Filé com brócolis: mudanças entre as edições

De Sexta Poética
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Antes de lançar pena ao papel, como se dizia há um século e meio — espantoso ter que retroceder tantos anos assim para criar um ambiente de pessoa sentada numa escrivaninha, ou para a imaginação ficar livre do manto tecnológico que baniu os artefatos primitivos do ofício de escrever... Melhor então é recomeçar: antes de digitar no IPad os ingredientes necessários à receita, o chacareiro pesquisou — no Google obviamente — a origem do Alho Brasileiro, como é chamado a variedade de alho de casca roxa, vendido em alguns supermercados e noutros nunca achados. Desde as primeiras notícias de vítimas em Wuhan, do alastramento da doença, a chegada do vírus à Itália e a decretação da pandemia pela OMS, uma verdadeira guerra de informações  e contrainformações tem sido travada entre os grupos de opinião. A China virou alvo predileto dos xenofóbicos de plantão. Não cabe a um cronista posicionar-se de um lado ou de outro. Menos ainda ao chacareiro, a quem importa mais saber porque o alho brasileiro tem a casca roxa e o chinês cinza com rajas de castanho. Pesquisou, pesquisou e nada. Deixa pra lá, salta o parágrafo. Fica assentado que o alho roxo tem mais alicina, a substância que faz o alho ter cheiro de alho, não precisa saber mais, basta por enquanto.
 
Seja como for, os ingredientes são meia cabeça de alho, dois brócolis médios e filé mignon, pode ser inteiro, pode ser metade, pode ser um bom pedaço (óleo é default. Qualquer, é preferível o de girassol). Começar a crônica pelo título é um problema, se vemos nisso uma amarração, pode ser prejudicial aos devaneios. Mas vejamos sua serventia, agora por exemplo puxou os brócolis.  Começa por eles mesmos.  Numa panela vaporeira (achou o nome no Google também) coloca água pra ferver e quando levanta a fervura, põe os brócolis, dez minutos no vapor são suficientes. O chacareiro já usou só um, mas do dia que fez com dois não repetiu a economia. O óleo ele usa, como disse, o de girassol e o sal, como sempre, é a gosto. Fazer piadinha com o oitavo mês do ano não pega muito bem. Descascar o alho embaixo da torneira facilita, se deixar os dentes dentro d’água alguns minutos antes de descascar facilita muito. Dentes descascados, o chacareiro toma da faca, deliciosa expressão, viril, decidida, e sobre a tábua corta o alho em fatias nem muito grossas nem finas demais. Por causa dessa receita, uma das suas preferidas, ele se obrigou a separar essa tábua e comprar outra exclusivamente para cortar as frutas da salada tresemesumele (Veja a crônica “Florais caninos”, se faz questão de conhecer a salada. No entanto, não é tão extensa a explicação, aliás curta e simplória: 3 emes e 1 ele - manga, maçã, mamão e laranja). Naquelas pesquisas infrutíferas, um dos resultados lançou luz sobre a fama que alho tem de espantar vampiros; curiosa explicação — antigamente o alho era usado em velórios  para disfarçar o cheiro do defunto e, mais curioso ainda,  disfarçar não por causa dos amigos e parentes, mas para afastar a alma do falecido do corpo inerte — a volta da alma ao corpo originaria um novo vampiro, essa era a crença. É melhor voltarmos para a culinária!
 
Antes porém, já que surgiu aquela citação de um texto anterior, não é totalmente estranho lembrar que na receita do pão de açafrão falou-se do vigia noturno que ajudou o cachareiro a manobrar na vaga apertada. Faltou completar, ajudou para não repetir a barbeiragem do dia anterior. Chegando no fim da tarde para a famigerada reunião de condomínio, ao colocar o carro na vaga da garagem, um descuido e deu um raspada com o pára-lamas frontal esquerdo no paralamas direito traseiro do veículo do vizinho. Comprometeu-se a entrar em contato com o morador dono do carro. Ficou enrolando, enrolando, fazendo cera e, justamente hoje, quinze dias depois, resolvido a finalmente comunicar para a companhia de seguro esse pequeno sinistro, foi tarde; ao chegar na 208 eis que deparou com o tal morador com cara de poucos amigos, postado no seu caminho feito um leão de chácara. Leão de chácara! Apesar de consciente da culpa no cartório, ninguém gosta de ser intimidado. A reação natural é enfrentar a provocação. Mas o chacareiro contou até dez e com toda calma pediu desculpas, dispôs-se a conversar com o vizinho. Visivelmente alterado, o vizinho reclamou que o espelho da lanterna traseira, lado motorista, era cara e difícil de ser encontrada. A própria concessionária Nissan não tem em estoque e será preciso encomendar à fábrica. O chacareiro no primeiro momento não lembrava de ter danificado a lanterna, pra ele fora apenas um arranhão na pintura. O vizinho não se conteve, resmungando ter testemunhas, entrou no carro, deu marcha ré e foi embora. Ainda bem. Por via das dúvidas, o chacareiro foi conversar com o porteiro, que estava na guarita do prédio assistindo toda a cena. Este confirmou que a lanterna do veículo realmente sofreu uma pequena trinca. O chacareiro ainda comentou que não percebera no dia, final do mês passado, mas perguntou e obteve o número do telefone do morador, agradeceu e subiu para o apartamento. No recesso do seu lar, ligou para o seguro, abriu a ocorrência, iniciou o processo informando as circunstâncias da colisão, marca, modelo, cor e placa do veículo do vizinho e em seguida ligou para ele informando o número do sinistro. Cabe a ele agora dar andamento à burocracia, com vistorias e tudo o mais, aquela chateação. Vocês que são brancos que se entendam. Dá licença que o chacareiro tem mais o que fazer. Desculpem o mau jeito, mas é isso, algumas inutilidades o aguardam.
 
Buscando se redimir, vamos ao foco, filé com brócolis. A panela que vai ser usada para o nosso personagem central, o filé — sim, o brócolis se contenta com o crédito de primeiro coadjuvante, pode ser a de pressão ou outra qualquer desde que seja pesada, panela de ferro é ideal. Numa boa quantidade de óleo, frita as lâminas de alho até que elas vão pegando uma corzinha, quando elas já “soltaram os aromas”, tira com uma escumadeira e reserva. Infla o ego do chacareiro repetir: tira o alho e, botando banca de sabichão, reserva. O óleo que fica e será usado está impregnado, já pegou o gosto do alho, é o que queríamos, e o filé já antes foi temperado com sal e algum tempero, lemon herbs é uma boa opção. Filé então na panela, fogo baixo, dez minutos de um lado com a panela tampada, destampa, vira o filé, deixa dez minutos mais, destampa, vira de novo o filé, joga o brócolis e o alho que estavam reservados para esse momento, mexe por um minuto, vira o filé e mexe por mais um minuto. Pronto, pode servir, acabou a crônica. Só para escrever outra, vai fazer um tal “frango na melancia”, vamos ver o que vai sair.
 
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[[Categoria:Crônicas da pandemia]]
[[Categoria:Crônicas da pandemia]]

Edição das 14h39min de 23 de julho de 2021


Antes de lançar pena ao papel, como se dizia há um século e meio — espantoso ter que retroceder tantos anos assim para criar um ambiente de pessoa sentada numa escrivaninha, ou para a imaginação ficar livre do manto tecnológico que baniu os artefatos primitivos do ofício de escrever... Melhor então é recomeçar: antes de digitar no IPad os ingredientes necessários à receita, o chacareiro pesquisou — no Google obviamente — a origem do Alho Brasileiro, como é chamado a variedade de alho de casca roxa, vendido em alguns supermercados e noutros nunca achados. Desde as primeiras notícias de vítimas em Wuhan, do alastramento da doença, a chegada do vírus à Itália e a decretação da pandemia pela OMS, uma verdadeira guerra de informações e contrainformações tem sido travada entre os grupos de opinião. A China virou alvo predileto dos xenofóbicos de plantão. Não cabe a um cronista posicionar-se de um lado ou de outro. Menos ainda ao chacareiro, a quem importa mais saber porque o alho brasileiro tem a casca roxa e o chinês cinza com rajas de castanho. Pesquisou, pesquisou e nada. Deixa pra lá, salta o parágrafo. Fica assentado que o alho roxo tem mais alicina, a substância que faz o alho ter cheiro de alho, não precisa saber mais, basta por enquanto.

Seja como for, os ingredientes são meia cabeça de alho, dois brócolis médios e filé mignon, pode ser inteiro, pode ser metade, pode ser um bom pedaço (óleo é default. Qualquer, é preferível o de girassol). Começar a crônica pelo título é um problema, se vemos nisso uma amarração, pode ser prejudicial aos devaneios. Mas vejamos sua serventia, agora por exemplo puxou os brócolis. Começa por eles mesmos. Numa panela vaporeira (achou o nome no Google também) coloca água pra ferver e quando levanta a fervura, põe os brócolis, dez minutos no vapor são suficientes. O chacareiro já usou só um, mas do dia que fez com dois não repetiu a economia. O óleo ele usa, como disse, o de girassol e o sal, como sempre, é a gosto. Fazer piadinha com o oitavo mês do ano não pega muito bem. Descascar o alho embaixo da torneira facilita, se deixar os dentes dentro d’água alguns minutos antes de descascar facilita muito. Dentes descascados, o chacareiro toma da faca, deliciosa expressão, viril, decidida, e sobre a tábua corta o alho em fatias nem muito grossas nem finas demais. Por causa dessa receita, uma das suas preferidas, ele se obrigou a separar essa tábua e comprar outra exclusivamente para cortar as frutas da salada tresemesumele (Veja a crônica “Florais caninos”, se faz questão de conhecer a salada. No entanto, não é tão extensa a explicação, aliás curta e simplória: 3 emes e 1 ele - manga, maçã, mamão e laranja). Naquelas pesquisas infrutíferas, um dos resultados lançou luz sobre a fama que alho tem de espantar vampiros; curiosa explicação — antigamente o alho era usado em velórios para disfarçar o cheiro do defunto e, mais curioso ainda, disfarçar não por causa dos amigos e parentes, mas para afastar a alma do falecido do corpo inerte — a volta da alma ao corpo originaria um novo vampiro, essa era a crença. É melhor voltarmos para a culinária!

Antes porém, já que surgiu aquela citação de um texto anterior, não é totalmente estranho lembrar que na receita do pão de açafrão falou-se do vigia noturno que ajudou o cachareiro a manobrar na vaga apertada. Faltou completar, ajudou para não repetir a barbeiragem do dia anterior. Chegando no fim da tarde para a famigerada reunião de condomínio, ao colocar o carro na vaga da garagem, um descuido e deu um raspada com o pára-lamas frontal esquerdo no paralamas direito traseiro do veículo do vizinho. Comprometeu-se a entrar em contato com o morador dono do carro. Ficou enrolando, enrolando, fazendo cera e, justamente hoje, quinze dias depois, resolvido a finalmente comunicar para a companhia de seguro esse pequeno sinistro, foi tarde; ao chegar na 208 eis que deparou com o tal morador com cara de poucos amigos, postado no seu caminho feito um leão de chácara. Leão de chácara! Apesar de consciente da culpa no cartório, ninguém gosta de ser intimidado. A reação natural é enfrentar a provocação. Mas o chacareiro contou até dez e com toda calma pediu desculpas, dispôs-se a conversar com o vizinho. Visivelmente alterado, o vizinho reclamou que o espelho da lanterna traseira, lado motorista, era cara e difícil de ser encontrada. A própria concessionária Nissan não tem em estoque e será preciso encomendar à fábrica. O chacareiro no primeiro momento não lembrava de ter danificado a lanterna, pra ele fora apenas um arranhão na pintura. O vizinho não se conteve, resmungando ter testemunhas, entrou no carro, deu marcha ré e foi embora. Ainda bem. Por via das dúvidas, o chacareiro foi conversar com o porteiro, que estava na guarita do prédio assistindo toda a cena. Este confirmou que a lanterna do veículo realmente sofreu uma pequena trinca. O chacareiro ainda comentou que não percebera no dia, final do mês passado, mas perguntou e obteve o número do telefone do morador, agradeceu e subiu para o apartamento. No recesso do seu lar, ligou para o seguro, abriu a ocorrência, iniciou o processo informando as circunstâncias da colisão, marca, modelo, cor e placa do veículo do vizinho e em seguida ligou para ele informando o número do sinistro. Cabe a ele agora dar andamento à burocracia, com vistorias e tudo o mais, aquela chateação. Vocês que são brancos que se entendam. Dá licença que o chacareiro tem mais o que fazer. Desculpem o mau jeito, mas é isso, algumas inutilidades o aguardam.

Buscando se redimir, vamos ao foco, filé com brócolis. A panela que vai ser usada para o nosso personagem central, o filé — sim, o brócolis se contenta com o crédito de primeiro coadjuvante, pode ser a de pressão ou outra qualquer desde que seja pesada, panela de ferro é ideal. Numa boa quantidade de óleo, frita as lâminas de alho até que elas vão pegando uma corzinha, quando elas já “soltaram os aromas”, tira com uma escumadeira e reserva. Infla o ego do chacareiro repetir: tira o alho e, botando banca de sabichão, reserva. O óleo que fica e será usado está impregnado, já pegou o gosto do alho, é o que queríamos, e o filé já antes foi temperado com sal e algum tempero, lemon herbs é uma boa opção. Filé então na panela, fogo baixo, dez minutos de um lado com a panela tampada, destampa, vira o filé, deixa dez minutos mais, destampa, vira de novo o filé, joga o brócolis e o alho que estavam reservados para esse momento, mexe por um minuto, vira o filé e mexe por mais um minuto. Pronto, pode servir, acabou a crônica. Só para escrever outra, vai fazer um tal “frango na melancia”, vamos ver o que vai sair.