Pontuação
Escrever e jogar gamão são minha diversão. De um vou para o outro num piscar de olhos, quase como quem passa do quarto para sala numa casa pequena como a minha, que não tem o luxo de um corredor. No iPad bastam alguns cliques. No gamão inventaram um modo de monetizar o jogo… (esse verbo, pensava que era mais um americanismo adotando o money. Na verdade provém do francês monètiser). Amoedar, resolvido o impasse, criaram um modo de amoedar o gamão: entre uma partida e outra, aparece do nada um vídeo promocional. “Pular esse vídeo é fácil, mas pular a prestação do imóvel, só nos financiamentos do Banco X”, diz um deles. Para jogar sem ter que assistir essas propagandas tem que baixar outra versão do aplicativo, pagando mais, obviamente. Baixado o jogo, na versão grátis com propaganda ou na paga, o jogador compra fichas e pode apostar 10, 50, 100, 500 ou 1000 “golds”. Toda partida valendo 10, por exemplo, o perdedor perde os 10, mas o vencedor só ganha nove golds. A banca sempre fica com 10%. Assim caminha a humanidade. Há alguns anos comprei 1000 fichas ou golds e de lá pra cá venho ganhando e perdendo, já tive 70 mil fichas, atualmente estou com 1923. Bingo!
Justamente no momento quando ganhei uma partida e somei nove pontos e vi essa minha pontuação atual, resolvi sair do quarto e passar à sala; ou seja, veio aquela conhecida urgência de escrever. Lembrei da minha mãe, que nasceu dois anos depois, em 1925, metade da terceira década do século XX. Guardo como a uma pedra preciosa — e adoro quando ela brilha lá dentro dos escaninhos da memória — a lembrança do dia em que ela me mostrou uma palmeira Buriti, a majestosa Mauritia flexuosa, na Fazenda Desterro, perto de Brazlâdia, e me disse com brilho nos olhos que nasceu embaixo dela. Ainda hoje tem pessoas que imaginam que antes da capital ser transferida do litoral para o Planalto Central só havia mato, onça e cobra. A verdade é que já quase não havia palmo de terra sem que alguém não zelasse pelo pasto para alimentar seu gado.
Lembrei também, pela proximidade no tempo, da semana de arte moderna ou “Semana de 22” que em 1922 ficou marcada como o início do movimento modernista no Brasil. Ainda não havia o fantasma do Coronavírus em 2020 e pudemos, eu e Minha filha Tarsila, visitar no MASP a exposição da Tarsila do Amaral. A pintora fazia parte do Grupo dos Cinco que idealizou o evento histórico, mas por estar em Paris naqueles dias, ela não participou diretamente da Semana.
E para aplacar definitivamente, ao menos por ora, o comichão, pesquisei um pouco sobre o lançamento da pedra fundamental de Brasília, nesse mesmo ano, quando o “grito do Ipiranga” completava 100 anos. Foi uma epopeia realmente. Como é amplamente sabido, qualquer pessoa pode incluir uma informação na Wikipédia. O que não é tão divulgado é que o tempo todo existe uma turma de voluntários checando se as informações inseridas estão lastreadas em alguma publicação prévia. Caso não esteja, o conteúdo é deletado. Pois bem, em 2010 este escriba que está tendo agora o privilégio da sua atenção resumiu na Wikipédia informações contidas no seu livro de cabeceira “A Mudança da Capital”. Relatando com detalhes as dificuldades de erguer o monumento no Planalto Central, Adilson Vasconcelos, o autor do livro, conta tudo, desde as primeiras ideias de interiorizar a capital do Império, uma carta do estudante de engenharia de Lisboa, Francisco Adolfo de Varnhagen, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1839, até a inauguração de Brasília em abril de 1960. Ainda não cheguei a essa pontuação, mas ainda chego lá.
Assim vamos, ganho 9, perco 10, ganho dezoito, ganho trinta e seis, ganho e perco e navego nesse mar, viajo na pontuação. Nessa última partida, aprendi que se as coisas não estão lá essas coisas, difíceis e distantes de darem certo, pode valer a pena arriscar-se um pouco mais: ou inverte-se a situação ou fica de uma vez definido o fracasso. Nesse caso foi isso mesmo, perdi dobrado, 20 pontos. Voltei para o início do século, 1903, um ano depois do nascimento do nosso Poeta Maior, Carlos Drummond de Andrade. E agora, José? Me lembra aquele adágio: de onde não de espera nada, não sai coisa nenhuma mesmo.