A obra
<poem> A OBRA (Brasília, 1982)
William Santiago
Tudo começou, senhor Delegado, na minha opinião, há muitos anos atrás, num sobrado do interior, de grandes janelas verdes, portas pesadas que nem a Cruz de Cristo, escadas ocas de madeira. . . Pois assim foi que seu Ternésio, o mestre de obras, principiou o depoimento sobre o caso de Aristides, no que eu, seu Delegado, não concordo, pois é levar a história meio lá pros seus psicológicos, e essa é uma mania muito viciada e amolante que seu Ternésio tem. Claro, ele não é um simples pedreiro, como eu, ou servente, como o finado; pelo contrário, já passou de encarregado, hoje é mestre, cabra competente, aliás um dos melhores com que trabalhei nos anos últimos, os seis que já ando pelas obras desta nova Capital, botando tijolo aqui, colando massa acolá, acertando, aparando, meio qual esculpidor, se é que não aumento minha valia de mim mesmo, em assim me comparando. Pois que seu Ternésio anda sempre com maresias estranhas pra riba de nós outros. Política não—que isso, Deus nos afaste desses comunismo¬s e mourarias que andam por ai. Mas vai ver que até alguma leitura seu Ternésio tem, o mais certo, daí que ele sempre dana de escarafunchar a vida da gente nos seus passados, perguntando aqui e cutucando acolá, nas horas de nossas marmitas, nossa soneca de do meidia, até atrapalhando, volta e meia, certos sonhos sem vergonha que cismam de esvoaçar no céu da nossa preguiça.
O sobrado, senhor Delegado, tinha dois andares, quartos de rude assoalhado, grandes que nem salão paroquial, cristaleiras de bons vidros e melhores ainda madeiras, envernizadas por capricho de carapina amoroso, de grossa mão e fino trato, coisas de antanho, evidente, tempo do Onça, que hoje nem há tempo pra esses dedicados e só rico mesmo é que pode com os preços pela hora da morte. Tudo então; senhor Delegado, começou quando a vó apanhou toda a cambada de pirralho na malandrice, se tocando as partes, se admirando as vergonhas por debaixo dos guarda chuvas e chapéus de sol espalhados no assoalho do quarto, à moda de barracas de praia . . . Já não acho, seu Delegado. A opinião de seu Ternésio, o mestre, é muito bem vinda e respeitada, mas acho que tudo começou foi quando a nossa obra chegou no segundo andar, e aí é que começaram as maluquices de Aristides, aquelas visagens lá da cabeça dele, meio perturbado, um sujeito muito medroso, vergonhoso e arisco que nem cabrita de peito, cheio tanto de confusões no miolo, esse tanto que cresceu mais, quando a obra ficou na mesma altura do segundo andar do edifício em frente, e a professora apareceu. Claro, senhor Delegado, que os passados e criatório lá da vida dele contam. E muito. Era por isso mesmo que ele tinha seus receios de muIher. Foi a surra daquela tarde, com vara de marmelo, e o desfile pelado obrigado, atravessando cidade, a vó tirana indo atrás, pondo nele a culpa e a chefia daquelas safadezas do sobrado, gritando ela pro mundo inteiro olha gente, olha ele, olha o biliu dele, foi isso, claro, que amoleceu o tutano do bicho, e ele, é claro, não serviu mais de homem. Falar de mulher, falava, senhor Doutor, mas acho que vivia só de imaginação. Quando a gente na farra — o senhor sabe bem vida de homem solteiro ele nunca ia, sempre algum desculpamento. E nunca houve sábado, em todo esse tempo que a gente conheceu o finado que dissesse: esse ele varou na zona na cachaçada. Falar nisso nem a casa dele a gente ficou conhecendo, imagino como é que ele morava. Pois, seu Delegado, o depoimento de seu Ternésio merece todo o respeito de um rude como eu, mas não pode entrar cá no meu coco que é preciso voltar tanto na vida de um vivente pra se perceber o que passou faz tão pouco tempo. A história toda começou foi no dia em que ele conheceu a tal Bárbara, a professora. Bárbara e professora, senhor Delegado. Claro que era imaginação do perturbado, mas pra ele existia, senhor Delegado. Me explico? Um homem faz a verdade é com o que carrega dentro da cabeça. Ele carregava a professora, então ela existia. Endereço não tenho, mas é fácil, a Bárbara morava no segundo andar do edifício em frente ao que a gente construiu, o senhor já foi olhar? Eu caso, em todo caso, o que senhor quiser, se lá morar uma pessoa que nem a que o finado descrevia em suas fantasiações. Não mora, Doutor. O senhor pergunta o pedreiro, esse que vai depor depois de mim, ele era quem mais falava com o finado no acampamento, aposto como vai dizer nunca viu a tal de Bárbara, a tal professora que desfilava nua pelo segundo andar do prédio de frente da nossa obra. Pois, seu Delegado, após a fala de seu Ternésio, que o senhor fez o favor de me ler, pouca crença pode ter em mim, o explicado dele é muito belo e bem trançado, mas tenha que eu sou um cabra muito do chão e só falo o que vi com os olhos, eu conhecia bem Aristides, sem conhecer quase nada. Me explico: é que não dá pra conhecer ninguém o tanto que precisa. Se o senhor pára e pensa, descobre que não conhece nem seu irmão mais de junto, nem seu pai nem sua mãe. Assim o finado. Acho que ele nunca conheceu mulher, entende? Não? Conhecer aí já é outra coisa, conhecer que eu falo aqui é fazer essas besteiras que o nervo pede, senão ataca a cabeça, eu acho que o caso dele foi de tudo subir pra cabeça e aí foi que ficou todo de miolo mole, passou a sonhar acordado, aí é que começou a chamar gente pra ver gente o que ele via. Mas quá, quem há de? Nós somos gente do chão, não voamos que nem passarinho pra ver coisa por riba das nuvens, como os cantadores, os poetas, os santinhos que nem Padim Ciço do Joazeiro, Deus o tenha. Nós não, nem eu nem seu Ternésio, embora as coisas a gente veja de maneira distinta, ele com um olho, o de mais de dentro, eu com o outro, o mais de de fora, o que vê as coisas mesmo, as de pegar, tal e qual a colher, a pá, a enxada, o cimento, o cascalho, areia, tijolo . . . Pois. senhor Delegado, quando ele começou a ver a professora nua, queria, por todo modo, que a gente visse também. Aí, a gente via, pois não vê quase nada de bonito nesse imundo por aí. E nos chamava na hora da bóia, os que não podiam pagar a cantina, que comiam de marmita, nós que esperávamos a hora em que a professora acordava, vinha nua abrir a janela, se debruçava, olhava prum lado e outro da rua, cheirava o ar todinho do mundo, enchia de estourar os pulmões, alheia da poeira, os peitos lindos es¬premidos no peitoril da janela, morena como sei lá o quê, de cabelos corridos, pretos de noite sem lua. Bárbara que andava pelo quarto, arrumando suas gavetas, ar¬reganhando cortinas, virando aquelas partes lá pro nosso lado, claro, senhor Delegado, isso nunca existiu, mas cristão não resiste a histórias essas, é como se a gente toda visse e aí se babava de gozo, que nem curumim ouvindo causos de velha índia. E vinha seu Rovino carapina, Dercino eletricista, um servente e esse pedreiro que vem depor depois de mim, nós to¬dos os fregueses da hora da marmita. Que melhor que ver espécie de televisão se acendendo nos olhos do es¬quisito? Gente comia até engasgando, desejo de acabar depressa e ir ficar olhando pra janela do segundo andar, poder melhor escutar a história do dia. Teve até aquele vez em que ela convidou Aristides pra sair no fim de semana, bom, ele disse que era aquilo que queriam dizer os gestos lá da mão dela. O barulho da construção é infernal, senhor Delegado, o senhor já ouviu? Até hoje não sei como a dita cuja podia dormir até tarde com aquela zoeira de martelo, serra circular, plaina, policorte, a algazarra do guincho, betoneira, ela no seu resguardo, nós na faina da viga, do pilar, da laje e da lajota, no acerto das formas, na conversaria do trabalho e fuxicos sobre mulher, cerveja e futebol, que homem não tem quase outro assuntamento. Sim, é claro, na hora da bóia serena um pouco, mas o jeito de se falar era pelos sinais, que a distância entre a obra e o prédio é alguma coisa, e era daquele jeito que combinavam as coisas, mesmo essas complicadas que nem a companhia pro almoço e cinema. Pois, seu Delegado, seu Ternésio tem razão quando diz que faltava pouco pra acreditar na narração do defunto. Ela andava todo o quarto, arrumava a cama, se deitava e ia ler, ia descansar, se levantava de novo, ia lá pra dentro, voltava, a janela escancara¬da, ela todinha em pêlo, à vontade, e nós ouvindo Aristides contar, que nem a gente fosse cego e ele explicasse como é o arco íris. Então, seu Delegado, pra mim a história começa mesmo é no dia em que o Aristides danou a contar seus causos, e a gente a assistir à fonção da tal rapariga, pois, pra mim, não passa de rapariga quem faz arte desse tipo. Botar nós todos vesgos de vontade e nem convidar pra subir lá no apartamento. O senhor sabe, quando o pião não é casado nem amigado, fica meio difícil de arranjar mulher, só em se indo nas tias, as moças há que respeitar, é claro. Mas a obra não parava e logo passamos pro terceiro andar, pro quarto, quinto, sexto, e o Aristides sempre descendo na hora da bóia, fim de olhar a professora preguiçosa que acordava às onze da manhã, sol quente, a nos mostrar seus negócios, safada.
Pois é como se existisse, senhor Delegado, Bárbara e professora. O finado tirava lá da cabeça dele a mulher, e ela era que nem existisse, fosse viva. E mulher desse jeito bota homem maluco, Doutor, essas donas de expediente, de motor de si mesmas, mais vivas, não adianta negar. Mas com o tempo nós fomos cansando, porque as histórias passavam a ser as mesmas e, no fim, só seu Rovino, o carapina viúvo, muito assanhado, é que se assentava ao lado do esquisito pra escutar as sandices. Como é que vai a Bárbara, é fogosa ela, passou bem de ontem pra hoje, era sim o que a gente acabou por ficar perguntando, gozando lá da cara dele, quando já ninguém tinha figo pra escutar, todo mundo cansado, como bem disse seu Ternésio no depoimento acabado de ser lido pelo senhor. E quando foi se avizinhando o dia da entrega da obra, quando nenhum pião já pode voltar ali, ele foi ficando mais triste, mais triste, jururu alembrando galinha de goga, começou a querer ficar depois do serviço, acertando coisinha aqui, ali, acolá, esticando a corda do tempo, a modo de hora extra que ele nunca deu de cobrar. Até o último dia conversou com a professora, fazia sinais, ninguém ligava.
O serviço dele, senhor Delegado, era perfeito. Não atrasava nada, nunca houve reclamação de encarregado ou colega de serviço, até o último dia cumpriu tudo nos conformes. Pois foi no último dia, gente já ajuntando a tralha, que aconteceu. Uma dona gorda, passando em baixo, na hora, quase morreu de susto, pensando que o céu tinha desabado em sua cabeça, pois não é comum chover cristão assim, quase a se esborrachar na gente. Eu falo é por boca dos outros, seu Doutor, mas o recém contado por seu Ternésio é também o que ouvi, sem tirar nem por. Tinha pouca gente já na obra. Um ou outro dos acabamentos, um pastiIheiro, um bombeiro, Doutor Roberto engenheiro, feitorando uns retoques num apartamento de quarto andar. Dai falaram que Aristides tinha subido pro décimo e passa¬do pro terraço e era eu quem tinha de averiguar o que ele fazia. Doutor Roberto sabia duns fuxicos das piradices do defunto e veio inquirir. Apois que eu não disse nada, que se ele tava no terraço é porque algum trem esqueceu, mas que o senhor não se aperreie, vou e vejo isso., de meu olho mesmo. Fui e foi aí que vi, de cima do terraço, o corre corre, o junta junta, a folia lá embaixo. Maldei logo, desci correndo, nem gosto de alembrar, olhei pra aquilo no chão, mas logo tirei a cara, era triste demais e eu sinto vômito, senhor Delegado, até agora, só de pensar. Pois mais, seu Delegado, não sei contar, não fui no dia, se contar vai ser igual papagaio, repetindo o que ouvi, que é o que seu Ternésio contou. Agora, se tinha professora ou não, isso é com o senhor. Pra ele tinha. Era só mirar o cabra com mais força e, com pouco, era até capaz de se ver mesmo aquela iara nadando no corgo dos olhos dele, o tantã, o coitado. A todo jeito, Doutor, sua busca já não carece tanto de meus pensados, já que seu Ternésio esmiuçou tudo e muito bem esmiuçado. Se vi o cor¬po? Não, não fui no dia, tava de instituto, doença do mundo, mas não deixe seu escrivão botar isso aí não, tenho noiva e sei lá o que ela vai pensar de tais perdições. Além do mais já curei, não tem perigo. Pois que, daí, não fui no dia. Também já não tinha que fazer naquele lugar: a obra tinha acabado, já chamavam de edifício, a gente já não podia entrar ali mesmo.