Aprendizagem
Décimo segundo milésimo, quadrigentésimo trigésimo nono lugar no ranking. Sem pesquisar no Google como se escreve 12439 em números ordinais! O aprendizado vem naturalmente com a vontade de aprender. O interesse descompromissado abre os canais da inteligência e deixa entrar o que dá prazer conhecer, e a satisfação — essa que sempre se almeja perpétua — fixa o aprendido. A pontuação Elo do nosso chacareiro, depois de chegar ao máximo de 1656, despencou para a primeira metade, mas se aproximou novamente dos meados do século XVII. Ele deu sorte de enfrentar com sucesso adversários com pontuação Elo mais alta que a sua, e perder apenas para outros também mais graduados. Tem esse pormenor: vitórias para oponentes com Elo maior rende mais pontos, assim como apenas derrotas para oponentes com Elo menor incrementam muito os pontos perdidos. Truques do algoritmo.
O chacareiro venceu um oponente com Elo 2001, somou 2,38 pontos e chegou ao seu ápice: 1663,33. Algumas partidas e comemorou seu milésimo, sexcentésimo septuagésimo segundo ponto Elo, mais pelo prazer de pesquisar como seria seiscentos e setenta em ordinal e aprender — e escrever — do que pelos pontos em si. Pode algum dia algum leitor se interessar por esse seu relato, ele não conta com isso atualmente. Quando o planeta Terra estiver na sua terceira milésima volta ao sol após o nascimento do profeta Joshua, conhecido no Ocidente por Jesus Cristo, talvez chegue esse texto à leitura de alguém que dirá “interessante”. Talvez. Por enquanto, o chacareiro se satisfaz em saber que passou o equinócio de outono da segunda milésima, vigésima segunda volta DC em torno do sol na intersecção do paralelo 15:46:43 S com o meridiano 47:41:45 W, no vale do Rio São Bartolomeu, e se regozija também em observar diariamente o sol nascer entrando de esguelha pela janela da sala, aguardando com prazeirosa expectativa o dia em que os raios ficarão paralelos à mesa do café da manhã, no solstício de inverno.
Deixou de lado o tabuleiro virtual do seu Ipad e foi tratar da instalação de um novo relógio medidor de energia. O que existia na parede externa da casa pegou fogo, por causa de um raio que atingiu a rede elétrica. Estava no quarto quando ouviu um estampido, trovão não houve. Não se ligou no momento, mas pouco depois sua companheira, sempre mais atenta, deu o alarme. O fogo rapidamente consumiu o relógio. O que salvou tudo foi o extintor de incêndio do carro, estacionado na garagem, do outro lado da casa. O chacareiro providenciou um relógio medidor novo e para recebê-lo, mais precavido, fez construir um muro de 80 cm de comprimento por 1,5 m de altura, agora distante bons 50 metros da casa.
Mas nem sempre os incêndios que acontecem são fáceis de extinguir. Outro dia mesmo, por não querer sair da chácara, entrar no carro, dirigir até a cidade, ficar esperando sua companheira ter consulta médica no Mix Park da 910 Sul, passar na assistência técnica especializada para sua companheira consertar um Nobreake na 113 Norte, passar no banco para sua companheira tirar talão de cheque no CA do Lago Norte, ficar esperando sua companheira fazer atividade física com personal trainer no Shopping Deck Norte, almoçar em self-service e voltar para a chácara — fazer isso como se fosse pouco e fosse obrigação, por não querer, um verdadeiro incêndio tomou conta da casa. Não são fáceis de apagar, mas o chacareiro para aplacar o fogaréu, foi, fez e voltou são e salvo.
Enquanto aguardava no Mix Park ganhou mais algumas partidas. Quando viu estava em décimo primeiro milésimo, sexcentésimo octogésimo quarto lugar no ranking. Vivendo e aprendendo. E enquanto aguardava no café Coffee Break, a meio caminho da Academia Runway no Deck, um poema lhe assaltou:
Que será que as mocinhas conversam?
Gesticulam, apontam o dedo, mudam a postura,
Cruzam e descruzam os braços,
Enumeram fatos contando os dedos,
Perguntam retoricamente e já respondem elas mesmas…
Por fim vão embora
Sem perceberem que as acompanhava atento
Sorvendo um capuccino alguém com olhos de saudade…
Inesperada como o poema, assim que as mocinhas se foram levando consigo os gestos e as palavras, e deixando os olhos de saudade do chacareiro sem ter onde nem como repousar, uma senhora com seus 40 ou 50 anos se aproxima e — “aceita um presente de Deus?” — lhe pôs nas mãos instintivamente receptivas um livro grosso, uma Bíblia! Ele agradeceu ainda sob o impacto do poema que lhe assaltou, apenas passou a vista no livro e sentiu a incongruência do momento: na capa da Bíblia que a enigmática senhora lhe presenteou em nome de Deus, estava impresso o versículo 3:2 da carta que o Apóstolo Paulo escreveu aos habitantes de Colossas, cidade da Frígia, atual Turquia: “pensem na poesia e não nas mocinhas conversando”.
Não, nada disso, o texto bíblico reza “pensai nas coisas lá do alto, e não nas que são aqui da terra”. É o que está impresso na capa da Bíblia, mas trocando em miúdos, é a mesma coisa. O apóstolo Paulo é aquele que a serviço dos governantes locais daquele tempo perseguia cristãos e, conta a tradição, viu uma luz incandescente na estrada para Damasco e ouviu uma voz perguntando “por que me persegues, Saulo?” Ficou cego por três dias mas Ananias, a mando de Jesus, lhe restituiu a visão. A partir disso ele se tornou apóstolo, espalhando os ensinamentos cristãos.
Literariamente, o chacareiro diria que, com ou sem intervenção divina, chegou ao décimo primeiro milésimo, septuagésimo quadragésimo quinto lugar. Na realidade, a fé que ele professa em tudo vê operar as forças naturais, com resultados aos quais procura se adequar, buscando exatamente preservar a fé, princípio e fim de todas as coisas. Aliás, por falar nisso, intervenção divina, destino predefinido, fé, etc, bom seria entender como no gamão os dados são sorteados. Fica para outra crônica. Nessa é preciso apenas dizer que aos olhos do poeta, aquelas mocinhas conversando eram anjos que, descidos à Terra, discutiam quando, de que modo e quem afinal levar para os reinos celestiais. Vivendo e aprendendo.