Aceita-se sugestão: mudanças entre as edições

De Sexta Poética
Ir para navegação Ir para pesquisar
Sem resumo de edição
Sem resumo de edição
 
(9 revisões intermediárias pelo mesmo usuário não estão sendo mostradas)
Linha 1: Linha 1:
<poem>
<poem>
   O chacareiro outras vezes demonstrou que seus dotes culinários - assados, grelhados, cozidos, saladas frias, cada dia a mais de quarentena sua lista aumenta. Não era pra menos. O que era pra lá e pra cá, cidade e campo, tres dias lá, quatro dias aqui, teve que se fixar, escolheu o melhor. No primeiro dia do outono se mudou de mala e cuia para a chácara, alguns dias depois providenciou máquina de lavar e instalou varais de roupa. Não se ajusta perfeitamente ao figurino, mas o chacareiro lembra do ditado: A necessidade é mãe da invenção. E pra se manter no mesmo universo semântico, lembra também do que dizia sua mãe: tá inventando moda, menino! Inventado e pronto o arremedo de lar, tem aprendido a contemplar o vale do São Bartolomeu com olhos mais descansados, incorporou na rotina os exercícios pranayama, inspira quatro tempos, retém quatro, expira contando até oito e suspende a respiração dois segundos. Tem aprendido a ter a atenção posta dentro de si. Chamas no cerrado o assustam duplamente: pelas árvores, arbustos e gramíneas que viram cinza e uma espécie de amor-próprio que sai chamuscado.
   O chacareiro outras vezes demonstrou seus dotes culinários - assados, grelhados, cozidos, saladas frias, cada dia a mais de quarentena sua lista aumenta. Não era pra menos. O que era pra lá e pra cá, cidade e campo, três dias lá, quatro dias aqui, teve que se fixar, escolheu o melhor. No primeiro dia do outono se mudou de mala e cuia para a chácara, alguns dias depois providenciou máquina de lavar e instalou varais de roupa. Não se ajusta perfeitamente ao figurino, mas o chacareiro lembra do ditado: A necessidade é mãe da invenção. E pra se manter no mesmo universo semântico, lembra também do que dizia sua mãe: tá inventando moda, menino! Inventado e pronto o arremedo de lar, tem aprendido a contemplar o vale do São Bartolomeu com olhos mais descansados, incorporou na rotina os exercícios pranayama, inspira quatro tempos, retém quatro, expira contando até oito e suspende a respiração dois segundos. Tem aprendido a ter a atenção posta dentro de si. Chamas no cerrado o assustam duplamente: pelas árvores, arbustos e gramíneas que viram cinza e uma espécie de amor-próprio que sai chamuscado.


   O chacareiro preparou e agora procura um nome para batizar sua sopa, aceita sugestões. Nela vai frango, batata, inhame, chuchu, cenoura, cebola, alho poró, açafrão e gengibre. E macarrão de letrinhas que lhe sugeriu um nome mas não convenceu. O frango ele podia criar no quintal, mas não, compra no mercado a bandeja com quatro peitos e quando chega em casa separa e congela os pedaços separados. Descongela e cozinha em dois litros d’água com sal, pouco, pois herdou do pai a hipertensão arterial, além de uma unha encravada que no momento não caberia mencionar, mas o chacareiro comete o despudor.
   O chacareiro preparou e agora procura um nome para batizar sua sopa. Nela vai frango, batata, inhame, chuchu, cenoura, cebola, alho poró, açafrão e gengibre. E macarrão de letrinhas que lhe sugeriu um nome mas não convenceu. O frango ele podia criar no quintal, mas não, compra no mercado a bandeja com quatro peitos e quando chega em casa separa e congela os pedaços separados. Descongela e cozinha em dois litros d’água com sal, pouco, pois herdou do pai a hipertensão arterial, além de uma unha encravada que no momento não caberia mencionar, mas o chacareiro comete o despudor. As batatas são orgânicas como sói ser pequenas, que os orgânicos prezam as qualidades nutricionais e deixam de lado boas aparências. Mas no mercado escolhe as maiores pra facilitar o descascar. O inhame nem que procure acha grandes e se vira com o que tem. O chuchu também é orgânico e, igual ao convencional, exige um corte minucioso, a casca faz reentrâncias, difícil descascá-lo superficialmente como fez com a batata. A cenoura uma só seria suficiente se daquelas que o Pernalonga mastiga enquanto pergunta What’s up velhinho? Dessas orgânicas, tipo palito, precisa de três ou quatro. Cebolas orgânicas nunca são maiores que médias, picadas, tanto faz. O alho poró o chacareiro ruma para autossuficiência, sempre corta a base deles e põe numa chicrinha, palavra saborosa, com água para enraizar e daí uns dias enterra no canteiro. Já tem vários soltando folhas. Na sopa foi o que ele usou, só as folhas. O talo fatiou no almoço para acompanhar um filé de truta. O chacareiro tem passado bem. O açafrão é produção própria, dá trabalho desencavar, lavar, secar, moer, mas vale o esforço. Paciência conta muito. Tem lá fora uma bacia de tubérculos esperando chegar a hora. E o gengibre? Não é difícil cultivar mas esse, confessa, é colhido já limpo na gôndola do supermercado.
 
Refogou o frango desfiado com a cebola picada, acrescentou os outros legumes e depois ferveu tudo meia hora na mesma água do frango. Dez minutos antes de desligar, para engrossar o caldo e dar um toque literário, juntou o macarrão de letrinhas. O chacareiro nutre a esperança que elas nunca lhe faltem. Quanto ao nome da sopa, aceita sugestões.
</poem>
</poem>
[[categoria:Crônicas da pandemia]]
[[categoria:Crônicas da pandemia]]

Edição atual tal como às 17h42min de 20 de setembro de 2020

  O chacareiro outras vezes demonstrou seus dotes culinários - assados, grelhados, cozidos, saladas frias, cada dia a mais de quarentena sua lista aumenta. Não era pra menos. O que era pra lá e pra cá, cidade e campo, três dias lá, quatro dias aqui, teve que se fixar, escolheu o melhor. No primeiro dia do outono se mudou de mala e cuia para a chácara, alguns dias depois providenciou máquina de lavar e instalou varais de roupa. Não se ajusta perfeitamente ao figurino, mas o chacareiro lembra do ditado: A necessidade é mãe da invenção. E pra se manter no mesmo universo semântico, lembra também do que dizia sua mãe: tá inventando moda, menino! Inventado e pronto o arremedo de lar, tem aprendido a contemplar o vale do São Bartolomeu com olhos mais descansados, incorporou na rotina os exercícios pranayama, inspira quatro tempos, retém quatro, expira contando até oito e suspende a respiração dois segundos. Tem aprendido a ter a atenção posta dentro de si. Chamas no cerrado o assustam duplamente: pelas árvores, arbustos e gramíneas que viram cinza e uma espécie de amor-próprio que sai chamuscado.

  O chacareiro preparou e agora procura um nome para batizar sua sopa. Nela vai frango, batata, inhame, chuchu, cenoura, cebola, alho poró, açafrão e gengibre. E macarrão de letrinhas que lhe sugeriu um nome mas não convenceu. O frango ele podia criar no quintal, mas não, compra no mercado a bandeja com quatro peitos e quando chega em casa separa e congela os pedaços separados. Descongela e cozinha em dois litros d’água com sal, pouco, pois herdou do pai a hipertensão arterial, além de uma unha encravada que no momento não caberia mencionar, mas o chacareiro comete o despudor. As batatas são orgânicas como sói ser pequenas, que os orgânicos prezam as qualidades nutricionais e deixam de lado boas aparências. Mas no mercado escolhe as maiores pra facilitar o descascar. O inhame nem que procure acha grandes e se vira com o que tem. O chuchu também é orgânico e, igual ao convencional, exige um corte minucioso, a casca faz reentrâncias, difícil descascá-lo superficialmente como fez com a batata. A cenoura uma só seria suficiente se daquelas que o Pernalonga mastiga enquanto pergunta What’s up velhinho? Dessas orgânicas, tipo palito, precisa de três ou quatro. Cebolas orgânicas nunca são maiores que médias, picadas, tanto faz. O alho poró o chacareiro ruma para autossuficiência, sempre corta a base deles e põe numa chicrinha, palavra saborosa, com água para enraizar e daí uns dias enterra no canteiro. Já tem vários soltando folhas. Na sopa foi o que ele usou, só as folhas. O talo fatiou no almoço para acompanhar um filé de truta. O chacareiro tem passado bem. O açafrão é produção própria, dá trabalho desencavar, lavar, secar, moer, mas vale o esforço. Paciência conta muito. Tem lá fora uma bacia de tubérculos esperando chegar a hora. E o gengibre? Não é difícil cultivar mas esse, confessa, é colhido já limpo na gôndola do supermercado.

 Refogou o frango desfiado com a cebola picada, acrescentou os outros legumes e depois ferveu tudo meia hora na mesma água do frango. Dez minutos antes de desligar, para engrossar o caldo e dar um toque literário, juntou o macarrão de letrinhas. O chacareiro nutre a esperança que elas nunca lhe faltem. Quanto ao nome da sopa, aceita sugestões.