Errância 12

De Sexta Poética
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No mesmo dia, me sinto acabado. Em compensação, no dia seguinte, me sinto eu mesmo, o corpo mais bonito, o espelho limpo, o clima mais propício. Ontem fiz a décima segunda errância pelas quadras, uma por mês, boa média anual. 22 km, desci pela 408 e fui de bloco em bloco, verificando as calçadas rachadas, janelas encardidas. A Escola Classe 407, a Igreja Luterana na 406, o Edifício Ômega na 405, o Templo Seicho-no-ie na 404, o bloco J da 403, os O e P da 402. No Setor de Aurarquias Sul desci e escalei escadas desertas, entradas e saídas de garagens, estacionamentos ainda vazios, prédios recebendo os primeiros funcionários.

Tanto acontece todo dia, passando pelos lugares percebo isso, cada segundo é tempo suficiente.

Depois de passar pelo “Protocolo externo da Justiça Federal”, esgueirar pelos fundos do antigo Bloco O, sede do então MPAS, subi pelo canteiro central da via que segue para a Catedral Metropolitana de Brasília e volta dos lados da Esplanada. Mais acima, no semáforo passei de volta para o lado da torre da Caixa Econômica. O vigia do estacionamento do Banco Central quis me admoestar, mas perdeu o rebolado quando notou que eu apenas ultrapassei a guarita para depositar na lata de lixo a garrafinha d’água que eu sequei de uma vez, já uma hora e vinte de caminhada.

A passagem de pedestres do BC ao HDB é suja, mal iluminada e lotada de vendedores ambulantes que vendem lenços baratos, capinhas de segunda categoria para todo tipo de celulares e sombrinhas portáteis coloridas, mas não exalam aquele cheiro de excremento humano característico de outras passagens iguais. No calçadão ao lado do Distrital o dono do quiosque de salgadinhos varria a calçada caprichando para a faina do dia. Saí em direção ao Setor Comercial Sul, subi até o pronto socorro, onde dobrei a esquerda e relembrei os 57 dias em coma nos idos de 1981.

Da UTI que precisava do meu leito “para pacientes com mais chances de sobrevivência”, como justificaram para o meu pai, ele conseguiu que eu fosse recebido do outro lado da rua, no Hospital Sarah Kubitscheck. Centro de excelência em reabilitação, normalmente o Sarah não recebe politraumatizados naquele estado, mas pra minha sorte abriu uma exceção. 27 de outubro de 1981. Ontem, dezembro de 2019, passei do pátio em frente ao pronto socorro do hospital de Base para o prédio ao lado, Edifício Pioneiras Sociais. As duas mangueiras plantadas na frente na década de 60, carregadas de frutos testemunham o permanente da vida humana.

A primeira rua comercial da Asa Sul é formada pela CLS 102 e CLS 302, pela proximidade ao Setor Hospitalar ficou mais conhecida como Rua das Farmácias. Existem muitas, uma ao lado da outra. Numa delas, especializada em equipamentos, caseiras de rodas, bengalas, botas ortopédicas, etc, entrei, fotografei enviei para a pessoa interessada 5 modelos de chapéu anti-UV. Na semana que vem, faremos a travessia do Vale do Pati, na Chapada Diamantina, no centro da estado da Bahia.

Segui já imaginando o desenho do meu trajeto, o caminho percorrido em cada caminhada traça um desenho na crosta terrestre, uma figura no mapa da cidade. Gosto de pensar que estou elaborando um criação artística que desaparece no instante mesmo que é feita. O que fica é apenas o registro pelo GPS do aplicativo Strava no telefone celular. A arte é o caminhar, pegadas invisíveis, é enquanto vai sendo, em cada passo surge e some. Nos metros seguintes tudo é possível, todas as direções oferecem oportunidades de devaneio. No bloco de cima da CLS 302, antes da antiga Blumenau, entrei na esquina e passei para a área residencial. Numa quadra cercada de alambrado verde, uma equipe uniformizada fazia uma atividade qualquer, enfileirados, movimentos síncronos, funcionários vestindo camisetas com o que pareceu uma logomarca de uma empresa, lembrei da ginástica laboral do Banco do Brasil.