Receita de frango na melancia

De Sexta Poética
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Já se disse, a vida sem aventura não tem graça. O chacareiro partilha e compartilha dessa ou desta opinião. Não maneja lá muito bem os pronomes, menos ainda os seus atos e consequências. Talvez por isso deu-se por convencido que os seus ímpetos aventureiros, todos temos, seriam satisfeitos da porta pra dentro — estão justificados a crônica, o desejo de começá-la, a escolha do título e tema, a expectativa com seu desenrolar, o desafio de fazer acontecer, enfim, a emoção de escrevê-la. Caso o leitor não tenha acompanhado, vamos explicitar o raciocínio: o chacareiro nunca fez nem viu fazerem tal receita. Vai correr atrás de aprender, fazer e relatar. Não duvidem, ele tem seus ímpetos. Mas gato escaldado tem medo de água fria. Por isso ele se contenta em vivê-los protegido por uma espécie de redoma (viva a literatura!), inventando situações arriscadas, simulando perigos, peripécias imaginárias. Há quem veja aí lassidão, outros julgam sabedoria. É um modus vivendi.

Seria um inofensivo nariz de cera, saiu uma confissão de divã.

Em meados de março, quando se mudou de mala e cuia e fez da chácara sua residência, um amigo comentou que já vira quem se internasse junto à Natureza com propostas de escritor. Não foi o caso, mas na verdade o ambiente campestre é um habitat natural do patógeno da escrita. Então, coloquemos de lado análises psicanalíticas e mãos à obra. Na primeira investida, saiu imbuído do propósito, porém mal passou a porteira esqueceu de conferir se o caminhão de melancias, vindo de Uruaçu, noroeste de Goiás, às margens da rodovia Belém-Brasília, estava onde costuma ficar, ali no acostamento da DF 250, em frente ao Ultrabox do Itapoã. O Frango ele ia comprar no Pão de Açúcar, mas também não chegou a pensar nisso nesse primeiro parágrafo da história. Quando chegou no Eixão Norte nada mais ocupou seus pensamentos, todos tomados pelas belezas dos ipês rosa, escandalosamente belos nesse meados do mês de julho. Também se encantou com os cega-machados… não é só nos pronomes que escorrega, esses plurais de nomes compostos são uma eterna dúvida.

A grande questão porém que passou a atormentar o chacareiro, depois da primeira e segunda idas na cidade sem trazer nada palpável relacionado com a consecução da receita que ora perseguimos, é se ela realmente passará por mote da crônica. Na medida que se aproxima do prato, pari passo ele observa um movimento de indolência em si mesmo. A ideia nasceu a partir de um vídeo que recebeu no WhatsApp, no grupo de primos e amigos. Pesquisou no YouTube e achou vários outros, somente um deles o animou, justamente o que elimina as complicações de montar um braseiro e as substitui pela comodidade do forno a gás. Gosta de aventura mas tudo tem limite.

Colocou em votação, provisoriamente venceu sim, vai persistir. Lembra com saudade do incentivo em forma de repreensão da sua mãezinha: “tá inventando moda menino”. Está. E não para por aí. Concebeu o “Espaço Medita-o-cerrado” e se lançou na empreitada. Explica-se: ao lado da casa, na encosta oeste do vale do Rio São Bartolomeu, montou um sistema de gotejamento e plantou oito linhas de espécies variadas, baru, cagaita, mamacadela, outras, a maioria nativas do cerrado. No meio dessa área sua companheira fez um jardim naturalista em forma de mandala; com um pé de bacupari no centro, saem oito raios de plantas, 48 pés de cajuzinho, 24 de mangaba. Espalhados aleatoriamente na mandala nasceram vários, muitos, bastante capim amargoso (Lepidaploa sp). Pouco acima da mandala, estava planejada uma área de camping, o chacareiro pensava em fazer uma caixa de areia, onde armaria barracas de acampar. Entretanto, um lugar assim, especialíssimo, merece algo tão inusitado quanto um frango dentro de uma melancia. Fez construir um deck circular de ipê sobre uma base com tijolinhos aparentes, 4,5 m de diâmetro. Além da meditação, pode servir também de heliporto para algum ovni fazer escala entre Alto Paraíso e o planeta deles, um desses milhões do universo.

Hoje saiu para levar a Lilica no veterinário, a clínica fica no Taquari. Antes de chegar no Varjão, depois que passa o córrego do urubu, sobe uma boa rampa. Cadelinha atendida ultrassonografia normal, exame de sangue normal, passou no supermercado. Em vez de frango, trouxe um galeto, ou seja, a mesma ave abatida mais jovem. Tira um pouco o apetite falar do processo industrial que abastece o mercado. A granja de avicultura não foi a mais prazerosa visita técnica do curso de agropecuária que fez no IFB Planaltina. E assim já vamos nos desviando do assunto. Não, vamos voltar, apenas dizer que não há a espera dos 28 dias, com no máximo 21 dias a ave atinge o peso e tamanho classificados “galeto”, e já pode ser convertida em moeda corrente. Um galeto pesando 815 gramas, atende perfeitamente ao nosso intento. Pensava em trazer também a melancia mas em frente ao Ultrabox hoje só se viu a barraca de outras frutas, bananas, laranja, pinha…

O tempo não precisa de ajuda pra passar, mas a gente inventa o passatempo justamente para ajudar. O predileto do chacareiro é o gamão, joga no iPad contra nomes improváveis de países desconhecidos, às vezes um Muhamed ou uma Kellen facilitam a suposição. Passaram-se assim alguns dias, e na terceira investida ele encontrou o caminhão de Uruaçu, ali onde esperávamos. Estava outra vez voltando do Taquari, Lilica foi fazer um novo ultrassom (o normal tem gradações). Não achou uma melancia pequena, compatível com o tamanho da ave, e mais importante, que coubesse no seu forno. Voltou de mãos abanando, como se diz. Ainda tentou num quiosque montado na entrada do condomínio Euler Paranhos, confronte a Águas Indaiá. Mas também só tinha melancia grande, “docinha, um mel”, o vendedor ainda tentou convencer. Já sei, pensou o chacareiro, onde achei o galeto vou achar aquelas pequenas, melancia baby é o nome. Resolvido.

No tempero vai três colheres de sopa de açafrão, duas colheres de café de sal, meia cebola, cinco dentes de alho, um milho verde cortado e 50 ml de água, tudo batido no liquidificador é passado por dentro e por fora do galeto. Abre uma tampa na melancia, com uma colher retira a polpa. Galeto lá dentro, fecha com palitos, melancia na forma, forma no forno, pré-aquecido é melhor. (Duas linhas atrás deve-se acender o forno). Duas horas e meia a 180-220 graus. A melancia fica um verde escuro, toda enrugada, bonita de ver. O galeto bem macio, um sabor interessante, um pouco adocicado, vai muito bem com cerveja clara, Leopoldina desceu redonda.

Valeu o aprendizado, na próxima vez vai aumentar o alho, diminuir o açafrão e a água será bem menos, apenas o suficiente para fazer uma pasta ao bater no liquidificador. O sal é melhor passar no próprio galeto, pega mais sabor, talvez as duas colherinhas sejam suficientes. Valeu a aventura