Receita de pão mistureba

De Sexta Poética
Revisão de 15h22min de 19 de agosto de 2021 por Nevinho (discussão | contribs)
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Quanto à crônica Receita de frango na melancia, ela acaba afirmando que valeu a aventura; a palavra pode ser a última, mas a aventura, essa não pode acabar. Nosso chacareiro está parecendo mais aquele personagem do Machado de Assis, que depois de aposentado do serviço público, vivia para escrever um diário. Mal a filha sugeriu fazerem um pão com recheio, que recheio, “sei lá, queijo, não sei, a gente inventa”, ele ficou motivado a registrar a cena; logo imaginou uma crônica pronta, já pôs o título, pão mistureba. O nome agradou, poderia ser pão miscelânea, mas a intenção foi essa mesmo, aproximar-se do dialeto juvenil. Pai e filha fazendo um pão mistureba. Essa ideia o acompanhou semana afora. Deixemos o tempo passar, tudo depende do cronos; da mesma família morfológica, a crônica obviamente também.

Já confessou que o gamão é seu passatempo predileto. Só as crônicas rivalizam com o tabuleiro virtual no seu iPad, não apenas pelo parentesco léxico mas também porque quando não está ocupado com afazeres da chácara, aguar plantas, roçar mato, abrir cova, plantar mudas… está lendo algo. Ou escrevendo algo. As crônicas tem sido seu playground. Para escrevê-las o chacareiro vai num dicionário, vai noutro, salta deste para aquele — e nisso, como no gamão, o tempo passa. Mistureba no seu dicionário significa mistura desordenada — de ingredientes, quando o tema é, como aqui, uma receita.

No século passado, houve jornal que veiculou receitas culinárias em página da frente para ocupar o espaço de assunto censurado pelas autoridades. Havia autoridade que censurava. Havia possibilidade da censura e usando desse recurso o censurado denunciava. Não havia internet, não havia YouTube. Há muitas receitas no YouTube (o chacareiro mesmo viu algumas antes de se aventurar na receita mencionada lá acima na primeira linha), mas há também muito conteúdo que nos anos 1970 dificilmente teria o alcance de hoje. Há muitas opiniões e há muitas contra opiniões. Se você leitor quer saber onde vai chegar esse entrelaçar de frases e períodos históricos, está igual ao cronista, a quem não cabe opinar favoravelmente a um lado ou outro. Outrossim, o chacareiro sempre desejou usar esse termo, outrossim com esta asserção anterior foi-lhe revelado o assunto que o rondava: a polêmica do voto auditável.

Os de um lado — para ser verdadeiramente polêmico, precisa concernir à guerra, ter dois lados opostos portanto — dizem que o voto de A pode ser contado para B; os do outro lado dizem que os mau perdedores, seja A, seja B, sempre dizem que é fraude quando perdem. Nesse disse-que-disse, a única palavra do chacareiro, outra vez, é não opinar; contudo lhe parece óbvio não ser possível conferir um voto que não é visto. E considera-se passando do limite.

Depois de tanto, não será muito esticar a corda e, desconsiderando o título, mandar receita menos miscigenada. Ainda pão, mas não mistureba, a necessidade de agradar o público juvenil “vanished”, ou desvaneceu, ou em bom português escafedeu-se. A filha que ia participar da realização da receita está ocupada com aulas virtuais, reuniões on-line — o EAD patinou anos, agora com a pandemia virou a salvação da Pátria. Quanto ao nosso pão, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA exige que na rotulagem dos produtos cosméticas conste a International Nomenclatura of Cosmetic Ingredient — INCI, utilizada no mundo todo. Produtos alimentícios não se enquadram em tal exigência, cada um anuncia os ingredientes como quer. Então let’s go, vamos lá:

- Ingredientia: 10 gramas de fermento biológico, uma colher de sopa de açúcar, 300 ml de água mineral, 600 gr de farinha de trigo, sal moído o quanto bastar, alguns fios de óleo , três pedaços pequenos de mandioca cozida, uma colher de sopa de açafrão.
- Modus operandi: dos mais de 80 mil quilômetros de estradas do Império Romano, nem todas iam a Roma ou de lá voltavam, mas hoje nos mostram que há mais de um caminho para qualquer objetivo. O chacareiro começa aquecendo a água e, quando sente com a ponta do dedo que ela está quentinha, joga um saquinho de fermento biológico e mistura o açúcar, mexe, mexe até ficar homogêneo. Deixa quieto e vai cuidar da massa. Derrama na bacia um pouco mais da metade do saco de farinha de trigo. Polvilha açafrão em cima. Desenha uns círculos de óleo. Mói o sal, quinze moídas e vamos ver como fica. Polvilha mais um pouco do açafrão. Amassa com um garfo a mandioca. Passados trinta minutos, derrama o fermento na massa. Como se dizia naquele tempo, “aos costumes” — sovar, amassar, amassar. Depois dessa sessão, deixa a massa descansar uma duas, três horas, abafada com um pano de prato. Unta uma forma, amassa um tiquinho mais e leva ao forno 180 graus por 40 minutos. Pronto, saiu mais uma crônica.