Receita do pão de açafrão

De Sexta Poética
Revisão de 22h00min de 6 de julho de 2021 por Nevinho (discussão | contribs)
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O chacareiro não ouviu os galos cantarem, o murmúrio da fonte acompanhando os primeiros acordes do dia hoje ele não ouviu borbulhar, acordou na 208 Sul. Teve que dormir lá porque ontem à noite teve reunião do condomínio, aquelas famigeradas reuniões, e precisava se por a par do que vai naquelas partes, ademais se tratou de reinstituir uma taxa extra. Quando o assunto fala aos ouvidos do bolso, uma voz de alerta vibra nos tímpanos, martelo e bigorna chamam para ação. Até praguejou ter que perder uma noite na tranquilidade do campo em troca do zumbido urbano, mas acabou apreciando a experiência de sair antes do sol nascer, pegar o Eixão na calma do contrafluxo presenciando o Astro Rei lançar as primeiras alfinetadas de luz sobre o movimento das pessoas vindo a cidade para trabalhar.

Geralmente é isso, custa muito sair mas quando sai tudo lhe parece com cores mais vivas, cada relance de vista ganha significado especial, palavras pululam e formam frases que, por si mesmas, fazem a realidade mais bonita. Vai e volta sentindo um comichão, tremura interior que pede um registro.

A sarna de escrever não é mal recente, atordoou sua adolescência e na juventude lhe roubou momentos de fruição inocente; atualmente porém o alivia pensar que a tal sarna pegou nele a tempo de se desvencilhar. Mesmo assim vez por outra ocupa seu tempo. Não faz mal, tempo tem lhe sobrado. Tanto é assim que depois de tomar café, lavou a louça e sem pressa foi fazer pão. Aquele patógeno da escrita quando pega no sujeito mais elder e menos jeune é mais difícil largar.

Sim, se desvencilhou até certo ponto: depois do pão sovado, lhe coçou o desejo de relatar, desde tirar o carro da vaga de garagem apertada com auxílio do vigia noturno do seu bloco, pegar o Eixão, cravar 60 no piloto automático do automóvel, passar pelo Buraco do Tatu sob a Rodoviária, sair no Eixão Norte e se deleitar com a aurora rosada sobre o Lago Paranoá, o espanto com a bola de fogo no horizonte, o fascínio das primeiras flechas de sol do dia iluminando o buquê de flor do Cega-Machado.

Mas tudo isso (e mais os detalhes esquecidos), a despeito da coceira, seria repassado em viva voz numa ligação de vídeo para o amigo. Conversa de amigos é assim, não obedece script, vai ao que vem na hora, e na hora veio a xícara de café que o amigo bebia antes de iniciar o atendimento no consulado brasileiro em Ciudad Del Este. Pronto, serviu de gancho para o chacareiro desviar o trajeto e, em lugar da sua jornada cidade-campo, pôs-se a compartilhar com o amigo seus caminhos pela culinária matutina - descambou ladeira abaixo discorrendo sobre suas habilidades em providenciar seu próprio desjejum. Contudo, a obrigação falou mais alto e, para encurtar assunto, com a sutileza própria dos diplomatas, o amigo pediu que lhe passasse a receita da iguaria que com minúcias de artesão ele se vangloriava de produzir. Todo mundo sabe, comer e coçar é só começar. Juntou a fome com a vontade de comer, ou mais propriamente, juntou a saciedade com a vontade de escrever. Vamos à receita então.

A primeira providência é tirar do fundo do armário a bacia maior que tem. Nesta vai primeiro a farinha de trigo, orgânica é melhor, faz toda a diferença no sabor e na textura. Sobre 500 gramas de farinha desenha dois círculos de óleo de girassol, acrescenta uma colher de café de sal e duas do açafrão. Pesa 10, 12 gramas de fermento biológico e reserva, como se fala entre os que entendem desse riscado. Ato contínuo, esquenta 300 ml de água mineral (não precisa desse requinte, se a água for como a da chácara, sem cloro, é o que importa) e vai sentindo a temperatura com a pontinha do dedo… quando está quentinho, adiciona os 10 gramas do fermento, mais uma colher de sopa de açúcar e espera crescer. É o tempo de jogar gamão, talvez dez partidas, meia hora no mínimo.

A segunda providência é sovar o pão, que é a palavra técnica para amassar a massa. Aqui o melhor seria um vídeo mostrando na prática, ou então lembrar a espiral do conhecimento, a conversão/reconversão dos saberes tácito e explícito - a metáfora do pão é a mais famosa. Na falta do equipamento teórico adequado, cumpre ao jardineiro se valer da antiga osmose entre goianos e mineiros e dizer amassar bem amassadinho - é o que basta, estamos entendidos.

A terceira providência requer apenas paciência, o que é muito para alguns. Na bacia em que foi amassada, a massa fica descansando coberta por um pano de prato de duas a três horas no sol. Algumas vezes usou o carro como forno - estacionado ao lado da casa, devido à inclinação do eixo terrestre, nesses primeiros dias de inverno, fica até a metade da porta de trás exposto ao sol - para colocar a massa para crescer. Outras vezes usou o forno do fogão mesmo, solução ortodoxa, com a lâmpada acesa. Não vai servir de hóstia, mas aqui vale o ditado: todos os caminhos levam a Roma se a massa dobrar de tamanho, o que ao fim das duas, três horas deve acontecer. Se dobrou bem, se não dobrou amém.

Assim sendo, passa a quarta providência, untar a forma com manteiga; depois de besuntar a forma, espalha um pouco de farinha de trigo; pra quê o chacareiro não sabe, mas aprendeu a fazer isso e acredita que assim ajuda a que depois de assado o pão não adira às paredes da forma. Está quase pronto, liga o forno, pré aquece 15 minutos na temperatura máxima e coloca pra assar a 180 graus por 40 minutos. Ou, como nos melhores resultados, ainda na mesma bacia maior que tem, sova mais um bom cadinho, põe a massa na forma untada, esta no forno desligado, e esquece, deixa ali e vai regar a horta, aguar planta, por quirela para os canarinhos, ração para os cachorros, o que for, só acende o forno à tardinha com o sol sumindo no morro; a essa hora já a massa cresceu bem e fica os mesmos 180 graus no tempo igual, 40 minutos; ótimo, pode retirar o quase da frase, está pronto.

Pronto o pão está, o mais são filigranas, como diria meu pai. Não é bom tirar logo do forno o pão, ou melhor, é melhor não repetir o erro da pressa (supondo que o amigo opte por assar o pão sem esperar que o sol se ponha). O mais indicado é que ele “descanse” 1 hora - ou uma hora por extenso se o seu manual de redação mandar, envolvê-lo naquele mesmo pano de prato de algumas linhas atrás e guardar em um saco plástico. Essa é a quinta ou sexta providência, já não sei. Para ao dia seguinte, depois do nascer do sol ou durante o inverno um pouco antes, saborear com patê de grão de bico. Passamos para outra receita e quem sabe outra crônica.

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