Zé do Brejo

De Sexta Poética
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Quando chegou à cidade goiana de Pirinópolis, Cruls dividiu a comissão em duas turmas. Uma, comandada pelo botânico Henrique Morize seguiria para Formosa, GO, em rota mais ao sul, passando por Santa Luzia (hoje Luziânia), e outra, tendo ele próprio à frente, iria direto numa linha quase reta, passando pelas cabeceiras do Rio Descoberto e pela Vila Mestre D'Armas até chegar em Formosa.

Antes de chegar ao meridiano de tordesilhas, eles subiram no pico dos Pirineus, desenharam cabeceiras dos rios Verde, Pichuá, Areias e do largo Rio Corumbá, analisaram o terreno e deixaram preciosas descobertas registradas em relatório. Um século depois, em 1960, a Votorantin abriu na região uma fábrica de cimento. A fábrica obviamente prosperou com a construção da capital no quadrilátero Cruls e da pequena vila construída para abrigar seus 800 empregados surgiu o povoado de Cocalzinho, inicialmente como distrito de Pirinópolis. Em 1990 o distrito ganhou autonomia, virou município e tem hoje dois distritos, Edilândia a x quilômetros da sede do município e Girassol, povoado próximo a Águas Lindas, na beira da barragem do Rio Descoberto.

A estrada que liga Brasília a Cocalzinho de Goiás é a BR 070, cujo quilômetro zero é justamente na divisa do Distrito Federal com o Estado de Goiás, na ponte sobre o Rio Descoberto, quinhentos metros abaixo da represa. No quilômetro x está o tal pequeno povoado de Edilândia, esquecido à beira da rodovia. (…)
Ao longo do perímetro urbano, depois que passa o posto de gasolina, várias barraquinhas vendem pequi e mexerica, pimenta malagueta e caldo de cana. Em um daqueles pequenos quiosques, Félix parou pra perguntar pelo tal monumento quando no outro lado da pista viu um quiosque com um grupo sentado numa mesa cheia de garrafas de cerveja. Chegou devagar com ares de desinteresse, olhou, ouviu, assentiu, achou graça de uma ou outra piada. Quando sua presença estava notada e aceita como parte da mesa, ele atalhou:
- O Adelvan lá de Girassol disse que tem uma placa por aí, um tal de tratado de tordesilhas por aqui, um marco na beira da estrada…
- heim? quê? Se entreolharam sem entender.
Félix foi escolhendo palavras, adaptando a linguagem e sendo o mais didático possível
- Há muitos anos atrás, coisa de cem anos, andou por aqui um pessoal e parece que fizeram uma construção aqui. Era pra marcar o tal tratado de tordesilhas. Um negócio meio engraçado rapaz, uns portugueses se juntaram com uns espanhóis e dividiram o mundo com uma linha, o que ficou de um lado era de um, o que ficou do outro é do outro.
Seu Apolinário virou os lábios, dizendo silenciosamente "nunca ouvi falar disso" e completou candidamente;
- Lembro não…
 Félix pensou em desistir, mas um pouco inebriado pela cerveja comprada no balcão e pela cachaça que ele mesmo produz, Seu Carneiro se lembrou do tal monumento.
- Tem mesmo, tô lembrando, fica assim bem próximo do acostamento, na pista daqui pra lá à direita.
- Eu nunca vi, emendou entediado o companheiro de cerveja.
- Tem isso aqui não, sentenciou outro, já impaciente com a mudança de assunto dos companheiros, que discutiam qual seria melhor para a continuidade da rotina pacata de Edilândia, se a Dilma Roussef ou o José Serra.
- Ah seu besta, fica um quilômetro depois daquele cruzeiro em cima do morro, onde entra pro buracão, na fazenda do cumpade Tota, onde diz que a vaca caiu e sumiu. A gente passa lá e nem vê, fica no fim da subida e o cara tem que ver se não vem um doido de lá, sabe como é que é… É uns poste de arueira com umas tábua escrito de preto. Tem isso mesmo.
O sujeito entediado ganhou vida, arregalou os olhos e se interessou pela prosa. "Tem memo nua praca preta, tatado de trodesia. Uns português, espanhol… passaram por aqui e deixaram ela"
Seu Carneiro, controlador de vôo aposentado da Aeronáutica, aproveitou pra deitar e rolar na ironia: "É, tinha português, espanhol, japonês, paraibano…"
O outro continuava de olho arregalado, mas como quem não está entendendo o que se passa. Félix aproveitou o momento pra ir embora. Sem que o grupo percebesse, Felix atravessou a pista e continuou no caminho, satisfeito com o resultado da conversa com aqueles goianos. Ficou mais satisfeito ainda ao encontrar o monumento de Aroeira na beira da estrada, um quilômetro depois de passar por uma enorme cruz no alto de um pequeno morro, tal como tinha dito Seu Carneiro. Tirou várias fotografias e voltou para mostrar, esperando ver a expressão de espanto do Seu Apolinário, para quem aquela história de divisão do mundo não fez o menor sentido.
Ao ver Félix de volta, Seu Carneiro se adiantou:
- Achou?
- Sou assim, mato a cobra e mostro o pau, disse Féliz mostrando as fotos do marco na câmara digital.
E Seu Carneiro aproveitou pra se destacar ainda mais do grupo e fazer sua propaganda.
- Sempre que passava ali eu notava, mas nunca comentei com essa turma porque ninguém aqui dá importância pra isso. Tenho uma fazendinha um pouco depois, coisa pequena, não planto não, compro a cana toda e fabrico a pinga. Comecei há seis meses, coisa pequena, nós fazemos lá, a gente mesmo engarrafa, paguei uma firma lá de Brasília pra fazer o rótulo, "Zé do brejo", boa mesmo, purinha.