Imaginação x inspiração

De Sexta Poética
Revisão de 15h34min de 30 de abril de 2010 por Betty VH (discussão | contribs)
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imaginação x inspiração



Nesta morada habitam paz, ternura,

curiosidade, dúvidas, razão.

Moram uns ódios, acho, uns medos, juro,

e uma doida: a imaginação.


Começa o dia: a louca acorda cedo.

Os outros inda dormem, ela não.

Me assobia uns sonhos em segredo,

bordando estrelas sobre meu colchão.


Mas nem ligamos para seus delírios,

eu e os outros. Acordamos, finalmente.

Faço uns alongamentos, sento em frente

ao micro, onde digito algumas laudas

que mando a um cliente.

Espreguiço.

Só então escovo os dentes...

É quando a doida da imaginação se esbalda:

De repente me grita: “O que é isso?!”

“Isso o quê?”, pergunto, atordoada.

Ela responde, séria: “Nada, nada.

É que tinha umas sombras no chuveiro...”


Já vi que vai zoar o dia inteiro.

Mas estou conformada: tudo bem.


Eu vou tomar café. Os outros – só assistem.

A louca vem,

faz da linhaça alpiste,

castelos de torradas.


Sobre meus ombros, ri lendo o jornal.

Mergulha em minha xícara,

que fica

instantaneamente povoada

de uns goles tortos que engulo sem receio:

conheço a louca. Ela é assim meio

destrambelhada, tonta, desatenta,

mas nunca quis meu mal.

A louca é, afinal,

quem me sustenta:

é dela, enfim, que vivo.


Subo para trabalhar.

(Se eu tiver sorte, ela me escreve um livro.)


Por tudo e pelos nadas agradeço.

O livro ainda está bem no começo,

mas sei que posso, sempre, confiar.


Trabalhamos, brigamos, competimos.


De bom humor, a louca faz uns mimos,

me brinda com idéias delirantes

– que amanhã, ok, levo adiante.


Sobre o teclado, a imaginação

vê em minhas mãos um dinossauro:

o dedo médio é a cabeça.


Mas eu também estou em extinção,

eu sei. A louca não:

ela persiste

como se fosse eterna. Nunca fica triste.

Quando delira,

a louca está feliz.


A inspiração, que é minha outra lira

de sonhos e brinquedos, cordas tensas,

se estende para um jogo. A louca pensa,

avalia o convite e se recusa

a brincar de versejar, contar estórias.

“Vamos lá fora”,

me propõe, ciumenta:

“Agora é hora

de ver o sol se põr.”


Eu não queria ir, mas a idéia me tenta.

(No fundo, bem no fundo, a louca é um amor.)


À noite, depois de duas horas de TV,

ela me diz: “Eu sou muito melhor!

Desliga esse negócio, vem comigo.”

Respondo: “Eu vou. Quer ver? Duvida?

Espera um pouco, só.

Você sabe que sou obediente.”


A louca da imaginação se impacienta e mente:

“Se você não vier, eu vou embora!”

Suspiro e obedeço, novamente.


A louca nem espera para ver.

Confia em seu poder e vai em frente.


Vamos todos juntos para a cama.

De madrugada, a louca é uma lente

que permite de longe ver lembranças,

colori-las, distorcer, voar:

uns tristes planos, o que não se alcança,

uns amores que tive, umas desesperanças,

aquilo que inda quero, o que vou ter.


Ela me pega no colo e me aconchega:

“Não pense nisso, não. Por hoje, chega.

Amanhã começamos outra vez”.


A sensação, por fim, de bem-estar.


Eu espero e confio, confortada.

Sem ela, quem sou eu? Um zero. Um nada.


p.s.

Explicação: Claro q escovo os dentes ao acordar, como todos os habitantes humanos do mundo q se considera civilizado. Mas se a ordem das ações fosse fiel à realidade, "esbalda" e "lauda" ficariam mto distantes... Já "espreguiço" e "isso" não são afetados, trocando a ordem. O q fez de "mim" uma desescovada foi pura questão de rima!

Nota

"A imaginação é a louca da casa" foi o tema dado para a primeira "provocação" do Quinto Desafio Literário, promovido pela Câmara dos Deputados (Literatura de Câmara). Nesse 'desafio', a cada semana é eliminado um autor. A provocação consistia em escrever um poema q descrevesse um dia na vida da imaginação, da manhã até a noite. Achei o tema, dado pelo coordenador Marco Antunes, dificílimo para os participantes (sou jurada do concurso). Mas resolvi encarar o 'desafio' (se eles têm q fazer, eu preciso no mínimo ser capaz de tentar...) e deu nisso q postei aqui. O Quinto Desafio está em andamento (está em sua terceira semana). Abraço!

--Betty VH 18h33min de 30 de Abril de 2010 (UTC)