Imaginação x inspiração
Nesta morada habitam paz, ternura,
curiosidade, dúvidas, razão. 
Moram uns ódios, acho, uns medos, juro,
e uma doida: a imaginação. 
Começa o dia: a louca acorda cedo. 
Os outros inda dormem, ela não. 
Me assobia uns sonhos em segredo, 
bordando estrelas sobre meu colchão. 
Mas nem ligamos para seus delírios,
eu e os outros. Acordamos, finalmente.
Faço uns alongamentos, sento em frente
ao micro, onde digito algumas laudas
que mando a um  cliente. 
Espreguiço.
Só então escovo os dentes...
É quando a doida da imaginação se esbalda: 
De repente me grita: “O que é isso?!”
“Isso o quê?”, pergunto, atordoada. 
Ela responde, séria: “Nada, nada.
É que tinha umas sombras no chuveiro...”
Já vi que vai zoar o dia inteiro. 
Mas estou conformada: tudo bem.  
 
Eu vou tomar café. Os outros – só assistem.
A louca vem, 
faz da linhaça alpiste,
castelos de torradas. 
Sobre meus ombros, ri lendo o jornal. 
Mergulha em minha xícara,
que  fica
instantaneamente povoada
de uns goles tortos que engulo sem receio:
conheço a louca. Ela é assim meio
destrambelhada, tonta, desatenta, 
mas nunca quis meu mal. 
A louca é, afinal, 
quem me sustenta:
é dela, enfim, que vivo. 
Subo para trabalhar.
(Se eu tiver sorte, ela me escreve um livro.)
Por tudo e pelos nadas agradeço.
O livro ainda está bem no começo, 
mas sei que posso, sempre, confiar. 
Trabalhamos, brigamos, competimos. 
De bom humor, a louca faz uns mimos, 
me brinda com idéias delirantes
– que amanhã, ok, levo adiante. 
Sobre o teclado, a imaginação
vê em minhas mãos um dinossauro:
o dedo médio é a cabeça. 
Mas eu também estou em extinção, 
eu sei. A louca não: 
ela persiste
como se fosse eterna. Nunca fica triste.
Quando delira,
a louca está feliz. 
A inspiração, que é minha outra lira
de sonhos e brinquedos, cordas tensas,
se estende para um jogo. A louca pensa,
avalia o convite e se recusa 
a brincar de versejar, contar estórias.
“Vamos lá fora”, 
me propõe, ciumenta: 
“Agora é hora
de ver o sol se põr.”
Eu não queria ir, mas a idéia me tenta. 
(No fundo, bem no fundo, a louca é um amor.)
À noite, depois de duas horas de TV, 
ela me diz: “Eu sou muito melhor! 
Desliga esse negócio, vem comigo.”
Respondo: “Eu vou. Quer ver? Duvida? 
Espera um pouco, só.
Você sabe que sou obediente.”
A louca da imaginação se impacienta e mente:
“Se você não vier, eu vou embora!” 
Suspiro e obedeço, novamente. 
A louca nem espera para ver. 
Confia em seu poder e vai em frente. 
Vamos todos juntos para a cama. 
De madrugada, a louca é uma lente
que permite de longe ver lembranças, 
colori-las, distorcer, voar:
uns tristes planos, o que não se alcança, 
uns amores que tive, umas desesperanças,
aquilo que inda quero, o que vou ter. 
Ela me pega no colo e me aconchega: 
“Não pense nisso, não. Por hoje, chega. 
Amanhã começamos outra vez”. 
A sensação, por fim, de bem-estar.
Eu espero e confio, confortada. 
Sem ela, quem sou eu? Um zero. Um nada.
p.s.
Explicação: Claro q escovo os dentes ao acordar, como todos os habitantes humanos do mundo q se considera civilizado. Mas se a ordem das ações fosse fiel à realidade, "esbalda" e "lauda" ficariam mto distantes... Já "espreguiço" e "isso" não são afetados, trocando a ordem. O q fez de "mim" uma desescovada foi pura questão de rima!
Nota
"A imaginação é a louca da casa" foi o tema dado para a primeira "provocação" do Quinto Desafio Literário, promovido pela Câmara dos Deputados (Literatura de Câmara). Nesse 'desafio', a cada semana é eliminado um autor. A provocação consistia em escrever um poema q descrevesse um dia na vida da imaginação, da manhã até a noite. Achei o tema, dado pelo coordenador Marco Antunes, dificílimo para os participantes (sou jurada do concurso). Mas resolvi encarar o 'desafio' (se eles têm q fazer, eu preciso no mínimo ser capaz de tentar...) e deu nisso q postei aqui. O Quinto Desafio está em andamento (está em sua terceira semana). Abraço!