A casinha canarinho
Naquela quinta-feira pré-carnavalesca saíram da chácara cedo e foram “sem fazer curva”, como se diz, cumprir ela a sua e ele a dele sessão fisioterápica com uma personal trainer na Academia Runway, no Deck Norte. Ele, especialmente, trabalha duas vezes por semana, com exercícios bem balanceados, a mobilidade, o equilíbrio, a força e a resistência física. Saindo de lá foram almoçar no Polo Verde, lugar entre os viadutos de acesso ao Lago Norte e o balão do Torto, que reúne alguns viveiros de árvores frutíferas, plantas ornamentais, jardinagem em geral. Numa das lojas, no Espaço Aroeira, pediram ambos um quibe acompanhado por trigo em grãos e salada de folhas com tomates. Ótima pedida, delícia. Lá mesmo, na saída, compraram uma linda casinha de cerâmica amarela, enfeitada com pequenos ladrilhos retangulares e coloridos, formando um belo mosaico — para os canarinhos da terra que visitam diariamente seu quintal. A porta é um pequeno orifício, do tamanho apenas suficiente para passarinhos de pequeno porte passarem. Está livre dos predadores maiores, como o tucano, o gavião ou mesmo as gralhas brancas. Está afastado até mesmo o risco de um João de barro preguiçoso querer ocupá-la, garantiu o vendedor.
Chegando na chácara, imaginaram um lugar para pendurá-la. No alpendre da casa, um lugar meio protegido do vento constante que varre o Vale do Rio São Bartolomeu, se demoraram cogitando vantagens e desvantagens. Olhando as vigotas e caibros do telhado, procurando um bom ponto de vista, o chacareiro foi andando para trás, atento ao melhor ângulo. Nisso, tropeçou nas estacas que cercam o “hibisco do primo Hélcio” (plantado ao pé do alpendre), desequilibrou-se e caiu de costas sobre as quatro estacas de angelim vermelho que cercam a coroa de um Araçá Piranga, este plantado ali mais abaixo, a meio caminho da ladeira do aterro, sobre o qual a casa foi construída. O tombo foi feio, ou bonito, dependendo do contexto e da entonação; ambos transmitem a mesma gravidade do acidente.
Alguém achou que seria atrevimento qualificá-lo como ecológico. Mas, como disse, tropeçar em plantas não é para qualquer um. Tudo na vida pode ter um aspecto mais ameno. Outro alguém, também para amenizar o acontecimento, sugeriu que para andar para trás, o chacareiro olhasse antes pelo espelho retrovisor, ou instalasse uma câmera de ré. Com esse espírito esportivo, como sempre e a todas suas mazelas, o chacareiro respondeu rápido, se levantou, se lembrou daquela música, sacodiu a poeira e tratou de dar a volta por cima. Sua primeira reação seguinte foi compartilhar o acidente com seus irmãos. Gravou um vídeo recriando a cena completa, descrevendo as razões e as consequências imediatas, as escoriações e os hematomas. O famoso Barão de Itararé, aquele que nem era de verdade barão, mas se autoconcedeu o título nobiliárquico, por causa de uma batalha que também não existiu — conhecido pelas tiradas humorísticas, ele diria: “as consequências vêm depois”. E assim foi: duas horas depois, passada a temperatura alta do sangue, começaram os desconfortos. Mexe daqui, mexe dali, resolveram procurar ajuda médica. Ligou para a telemedicina do seu plano de saúde. O resultado foi óbvio, sonolento o Doutor apenas cumpriu o protocolo. Em casos de queda da própria altura, a indicação é o paciente procurar atendimento presencial. Lá se foram eles. Apesar da sua situação, digamos periclitante, o chacareiro assumiu o volante por medo dos inevitáveis solavancos imprevistos da estrada esburacada nesse verão, chuvoso como há muito não se via. Chegaram já noite fechada, o fast-track do atendimento funcionou bem, ele logo ouviu seu nome e foi encaminhado ao Dr. Meirelles, ortopedista. A tomografia solicitada demorou para ser feita e muito mais para sair o resultado. Resultado expedido, ficaram um breve tempo sem pai nem mãe com as orientações confusas e incompletas da equipe do exame por imagens. Passada a falha de comunicação, com o prontuário em mãos, ele foi orientado a aguardar chamada numa saleta de espera contígua à Sala de medicação. Só essa perspectiva já lhe causou certo alívio. Foi chamado, sentou-se, colocou o braço no suporte e um rapaz sério e eficiente procurou sua veia, e ao contrário de quase sempre, pegou uma sem dificuldades e aplicou uma ou duas ampolas de soro fisiológico. Foi apenas uma manobra de instalação do “acesso”. O rapaz sério e eficiente, como era de se esperar, foi também paciente para explicar que primeiro faz-se isso para depois aplicar os medicamentos: uma ampola de novalgina injetada e duas bolsinhas que ficaram gotejando no suporte, uma de Dramim, outra de Tramal. Quando esvaziaram as bolsinhas, pensou que estava liberado, porém o Dr. Meirelles avisou que ainda não, o exame mostrou duas costelas quebradas. Seria necessário que um cirurgião geral avaliasse e desse a alta. O chacareiro sentiu um frio correr na espinha. Mas, afinal, a conversa foi tranquilizadora, apenas para receitar Lisador três vezes ao dia, Paracetamol com Codeína na mesma dosagem e o anti-inflamatório Alginac duas vezes ao dia, todos por cinco dias — e para falar o que ele já sabia: para fraturas de costela a única alternativa a ser adotada é analgesia e repouso. E concedeu alta sem mais problemas.
Cansados, resolveram não voltar para a chácara assim tarde da noite. Depois de passar na farmácia 24 horas do Setor Hospitalar Sul, foram dormir na 208.
No dia seguinte cedo ao voltar para a chácara, depois da madrugada no Pronto Socorro do Hospital Santa Luzia, ganharam um bônus, um casal de canarinhos os esperava na porteira de entrada. Uma maneira talvez de pedir ao chacareiro para não os levarem a mal, eles assumem a justa parte da responsabilidade por todo o enredo. Daqueles belos pios melodiosos, o chacareiro, emocionado, tirou a seguinte mensagem: “volta, seja bem vindo, seu lugar é aqui, faz, completa seu trabalho, porque nós vamos morar juntos por muitos anos ainda”. Dois dias passados a dor intensa ainda castigava o nosso chacareiro, mas pendurada numa ripa do telhado do seu alpendre, aquela casinha do canarinho lhe pareceu recompensa sobeja para todo o acontecido. Vicissitudes da vida, como uma amiga da 304 Sul lhe consolou.