Dois prazeres
Escrever e jogar gamão, jogar gamão e escrever. De um para ir ao outro apenas alguns cliques no seu iPad bastam. O chacareiro não consegue jogar mais que algumas partidas de gamão sem fazer um intervalo para registrar as reflexões. E escrever mais que algumas linhas sem um interregno — ah, esses valem mais que os reles intervalos (a literatura é todo um Reino) — quando se deixa vagar no rolar dos cubos numerados, para o chacareiro está cada dia mais difícil. Escrever e jogar gamão, seus dois prazeres.
Ninguém que escreve o faz sem arriscar a própria vida. Vai nisso uma boa dose de exagero, poderia dizer que é o inverso, quem escreve está se preservando. Textos que não procuram tornar o dia menos penoso ou mais alegre agradam menos, quem escreve e quem lê. Para o chacareiro, o objetivo é eternizar os momentos, documentar lembranças, é uma alfabetografia.
Ninguém que joga gamão está arriscando a vida, isso sim, nem buscando enriquecer, mas não agrada a ninguém enfrentar oponentes no gamão que simplesmente não encaram o jogo com seriedade, movendo as peças sem pensar, com agressividade explícita, deixando peças desprotegidas, parecendo não se importar se vai se dar bem ou não, em resumo, jogando por jogar. O inverso também não agrada, aquele tipo que investe a honra na vitória, uma derrota, um lançamento de dados infeliz e pronto, desaba o mundo. Procuro evitar uns e outros. Não, para o chacareiro o objetivo do passatempo é exercitar a matemática ludicamente, brincar com dados, e tal qual escrever um texto, fazer sinapses saudáveis, criar um mundo melhor, passar o tempo da forma mais agradável possível. No transcorrer da partida é fácil distinguir o jogador irascível, o que está ali a fim de extravasar tensões acumuladas daquele que apenas se diverte e busca manter relacionamentos construtivos.
Escrever e jogar gamão, jogar gamão e escrever.
Em frente ao teclado QWERTY, o chacareiro não gosta de deletar palavras, frases, parágrafos que já passaram da existência imaginária para o plano da realidade acontecida. Atitude respeitosa que não sabe explicar direito.
No gamão não gosta de pedir desforra. Perdeu, tudo bem, na próxima dá mais sorte ou tem menos azares e ganha: é sempre assim, uma vez um ganha, outra vez outro ganha. A vida assim fica mais leve, o ar mais respirável. É raro, mas já teve partida que ele até quis uma revanche, mas não pediu para não ferir um certo orgulho, não passar a impressão de não aceitar a derrota. Também não costuma aceitar pedidos de desforra, mormente quando ganhou de maneira acachapante e o adversário, denotando ansiedade, mal encerrada a partida, ato contínuo pede desforra. Às vezes, mesmo assim, aceita. Quando a vitória se deu escancaradamente motivada por uma sorte inopinada, como que para reparar uma injustiça da sorte, o chacareiro concede a revanche.
Causa-lhe decepção quando o chacareiro está ganhando, os dados favoráveis, as jogadas fluindo bem, tudo caminha para a vitória e, de repente, o adversário desiste da partida. Bate com a porta na sua cara, manda tudo às favas, joga a toalha. Nessas horas não busca se consolar na literatura, pois essa o recebe bem, ou melhor o acolhe, quando ele está de bem com a vida.
Do mesmo modo, ele sente um misto de decepção e tristeza quando está produzindo um texto escrito e sobrevém um blecaute, um apagão mental, as palavras somem, as ideias se esfumaçam.
Sem perceber, fecha o iPad, gamão e literatura de lado, vai se embrenhar nos afazeres da chácara, ver se aquela semente enterrada germinou, se aquele botão de flor se abriu, se o fruto que estava crescendo já está no ponto da colheita. Isso quando não foge para o esforço físico: se alia ao enxadão, pega na alavanca e cavadeira e vai arrancar capim braquiária, cavar buraco para deitar muda disso e daquilo… Afinal, se impôs o codinome e tem que honrar as obrigações de chacareiro.