Galatea e Pigmaleão

De Sexta Poética
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  Galatea e Pigmaleão


         Não entendia suas palavras, mas era tanta a candura em seu olhar que as silabas  nasciam com uma denotação universal, eu não entendia o que ela dizia, e ela mesmo sabendo disso dizia coisas e coisas para mim...e eu .... estava totalmente absorvido pelos grandes olhos castanhos que cintilavam daquele rosto pequeno e bonito, com maçãs tão delicadamente torneadas que eu pensava se elas talvez não tinham a medida exata para se encaixarem nas minhas mãos, ela falava coisas que eu não entendia e arregalava as sobrancelhas... e eu ...a olhava perdidamente na ten-tativa de captar cada traço de seu rosto, para que um dia, se as peças que a vida prega voltassem a se tornarem difíceis, eu teria os traços dela como a lem-brança mais linda do mundo, para nesta  memória me refugiar....sim as sobrancelhas, a vivacidade com que declamava aquelas palavras inteligíveis....eu ouvia tu-do e e estava  cada vez mais interessado naquele dis-curso diferente, o que ela dizia?Tanto fazia, era gosto-so ouvi-la e vê-la falar....
          Saímos de braços dados do bar, e à esta altura, eu também dizia muitas coisas em português , falava até sobre como eu gostava de ouvi-la falar, perguntei se ela não seria Galatea e eu Pigmaleão... então ela parou...olhou-me fixamente nos olhos e simplesmente sorriu...Galatea ela repetiu...Galatea....Seu nome é Ga-latea?Ela não desfez o lindo sorriso e lhes conto, que a esta altura, já era o instante mais lindo que eu poderia sonhar de sonhar de viver ou escrever ...colocou a mão aberta no meu peito e disse Pigmaleo...Olhamo-nos fixamente ...e ela puxou minha mão e saímos vaci-lantes pelas ruas nevadas da noite de Lubliana ...paramos em uma barraca de avelãs e compramos uma porção de avelãs derretidas no vapor, que eram servidas com kuhano vino, uma espécie de vinho quente muito forte ...eu não tinha pratica em descas-car aquilo e íamos nos equilibrando  pela cidade em-briagada, por entre as gárgulas da cidade eslava, por entre os labirintos que são os sonhos da noite, viramos em um dos muitos becos e demos de encontro à um grande edifício neoclássico...Historia, era uma das ins-crições congeladas na parede...Você estuda Histó-ria?Pigmaleaum ..Galatea ela repetiu...helenik histori-a...
    A nevasca não perdoou talvez porque o espírito dos Rios, conhecida figura da mitologia eslovena esti-vesse com ciúmes daquele casal impensável, e venta-va e caiam mais e mais flocos de neve...embaçavam meus óculos...via aqueles lindos cristais caírem sobre a nossa pele e em instantes desaparecerem...Galateas Pietra?Perguntei tentando algo em latim, e ela sim-plesmente balançou a cabeça  negativamente ani-nhando-se sob meu ombro, e eu a abracei...abracei toda a solidão das noites frias, todas as lembranças so-litárias impossivelmente solitárias que só um exilado da vida e dos próprios  sonhos como eu ousara sentir  e que abraçado nela sabia penar...nunca entendi exa-tamente o que foi envolvido naquele abraço, apenas senti demais ... eu a segurava com tanta força,com tanta, tanta força e ela à mim... 
    Èramos como as heras que estavam incrustadas nas seculares pedras das paredes em que nos atracamos, retirei minha luva e tomei seu rosto em minhas mãos, enxuguei aquelas lá-grimas que vinham de algum triste riacho de lembran-ças que aquele momento evocava...ela por sua vez sentiu sobre minha roupa a pesada tala de gesso, que tentava consolidar minhas próprias fraturas de guer-ra...seu olhar lacrimado teve uma palavra de respos-ta...Serbrinska...Medicins Sans Frontiere? Ne, Red Cross...com seu rosto junto ao meu coração entre os soluços sussurrava... Prossim... ne vidi NE... ne vidi NE!!! Prossim.... prossim.... prossim.... respondi à aquele pedi-do com um beijo...algo como um adjetivo entre terno e infinito...seu beijo era salgado no inicio..mas logo se tornou doce quando adentrei na linda fronteira do ins-tante de um carinho...seus cabelos salpicados de ne-ve...seu aroma infinito...suas lagrimas com as mi-nhas....prossim ela sussurrava, e eu..que desenhava sua orelha com a ponta de meu nariz, como se este fosse um desenho nascido de meus sonhos sussurrei em seu ouvido...chhhh... ne Servja...no more....nunca mais Ser-via....e a abracei.
   ...despedimo-nos sonhos e sonhos e mágicas  e tempos depois, fiquei apenas com o endereço da ca-sa de seus pais  para procura-la caso um dia eu voltas-se à  Eslovenia, prometi nunca mais voltar a Serbrinska; fiz-lhe uma jura lacrimada que lutaria pra sempre con-tra aquele pesadelo...existem momentos que  ficam tatuados na memória...e beijos que não tem tradução.
  Em 1998, as forças servias promoveram o maior genocídio da historia européia desde o Holocausto, 8000 croatas foram fuzilados, mulheres foram estupra-das e crianças transformadas em escravas sexuais, as crianças que conseguiram ser salvas pela Cruz Verme-lha e Pelos Medicos sem Fronteiras, foram adotadas por muitas famílias na Europa e retornaram muitos a-nos depois para estudar na Eslovenia, era parte de  um método inovador de tratamento de síndrome pós traumática.Em 2001, foi descoberta uma vala comum nos arredores da cidade de Serbrinka, equipes  de te-levisão, universidades, observadores internacionais e a Cruz Vermelha retornaram ao local para averiguar  e documentar  o sitio do Campo de Extermínio, muitas destas forças tiveram tristes encontros com as milícias servias que ainda aterrorizavam civis pelas monta-nhas.Anos Mais Tarde Slobodan Milosevich foi preso e extraditado para Genebra sendo acusado por crimes de guerra, morreu na prisão.Em 2008 o mandante do massacre de Serbrinka foi capturado e aguarda jul-gamento no tribunal de Haia.

Diz a mitologia que Pigmaleão era um escultor muito solitário, no auge de sua solitude esculpiu uma mulher de pedra para lhe fazer companhia.Os deuses condoídos por sua tristeza deram vida à estatua e a esta deram o nome de Galatea...