Morro em chamas

De Sexta Poética
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  Título já tem mas empaca na questão do ovo e da galinha, quem nasceu primeiro? O título faz a obra ou a obra depois de pronta faz o título? Nesse caso será a segunda opção, pois o título caiu do céu, maneira de dizer, ou foi ateado, muito provavelmente. Pode ser combustão espontânea, sempre é aconselhável na falta de certeza não se arriscar a estar lançando blasfêmias. De qualquer jeito um excelente título foi dado ao chacareiro, ele usa se quiser. Quis. Ainda mais esse, quase lhe faz sentir uma Ágatha Christie, já de algum modo presente no ambiente de instalação do sistema de monitoramento, câmaras de vigilância, universo investigativo bem próximo e caro à escritora inglesa. Ele já vinha com a cabeça quente por gastar um dinheiro que não sobra, refrescou os pensamentos misturando a terra preta com a cama de frango e adubando suas frutíferas. Mas no fim da tarde avistou num morro distante uma grande labareda, logo todo o horizonte depois do vale, do outro lado do rio, estava delineado com fogo. A seca desse ano não está pra brincadeira, umidade relativa do ar de deserto, até os calangos estão sentindo.

  O Rio São Bartolomeu forma um extenso vale que nasce praticamente onde o próprio inicia, e vai até onde a vista alcança, pra lá da Fazenda Taboquinha, já nos condomínios do Jardim Botânico. O rio começa na confluência dos Rios Pipiripau e Mestre d’armas, no Vale do Amanhecer, onde a Tia Neiva nos anos 1960 fundou uma comunidade espírita, com cultos concorridos frequentados pela elite política da capital federal, na verdade um ou outro deputado federal, algum senador da República. A partir da junção dessas águas, o Rio passa a receber o nome do santo. Porque do nome é mistério a desvendar, já que é o padroeiro dos pedreiros, alfaiates, sapateios e é formado por águas do Mestre d’Armas, fazedor de garruchas e utensílios de pólvora. Mistérios existem para nos misteriar, palavra que deveria existir.

  Mas a importância desse rio decorre principalmente dele fazer parte da bacia do Rio Paraná e através das Águas Emendadas ser elo de ligação, com perdão ao pleonasmo, entre a ilha do Marajó e o estuário do Prata, pelo meio do continente. Descrito pela primeira vez em 1892 pela Missão Cruls, muito devemos lembrar esse nome, o singular fenômeno hidrográfico reúne numa bela vereda cheia de palmeiras buriti águas que correm em direções opostas, para o Norte um córrego chamado Vereda Grande deságua no Rio Maranhão, que pelo Tocantins vai desaguar no oceano Atlântico entre o Estado do Amapá e o Estado do Maranhao. Na direção oposta, as águas formam o córrego Brejinho, que alimenta o Fumal, caem no Mestre d’Armas, unem-se ao Rio Pipiripau formando o São Bartolomeu. A partir daí o , chacareiro já combinou com um amigo, está tudo certo. Ele vai descer até a beira do rio e depositar na margem um bilhetinho. A mensagem vai deslizar para o Sul, passar pelo Rio Corumbá para o Paranaíba e flutuar para as águas do Rio Paraná. O amigo então vai descer do Hotel Cosmopolitan na Ciudad del Este, caminhar uns 500 metros até a beira do rio e ler a mensagem. Tudo literalmente líquido e certo.

  Como visto, outra grande importância desse Rio é ele passar na frente da casa do chacareiro, vem a milênios escorregando ladeira abaixo, o vento inclemente criando planuras e ondulações, o chacareiro ouve o rugido das águas escavando as rochas, as massas de terra se dobrando, formando na margem direita uma descida suave até o Rio onde se puseram chácaras, sítios e até fazendas maiores. Na margem esquerda morros e escarpas. É o que ardeu em fogo a noite inteira e proporcionou título para uma crônica. No dia seguinte, pra compensar a desolação da paisagem enegrecida, teve no almoço uma generosa porção de Brassicácias, repolho roxo e brócolis japonês, pedaços de frango tostados com açafrão e gengibre, arroz orgânico com quinoa e purê de batatas baroa. Como sobremesa regalou-se com sagu de uva coberto por creme belga, adoçado com açúcar demerara curtido em baunilhas polinizadas manualmente e colhidas da orquídea que cresce no pé de jatobá do quintal. Lauta refeição, tarde abençoada.