Nocti Lucca

De Sexta Poética
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   Nocti Lucca, uma vigia noturna.


                                                    “A noite , ao luar
                                                 No rio , uma vela
                                                     Serena a passar
                                             Que é que me revela?
 
                                          Não sei mas meu ser
                                                   Tornou-se distante
                                               E busco sem ser
                                            Os sonhos que tenho

                                             Que angústia me enlaça?
                                                 Que amor não se explica?
                                            È a vela que passa
                                               Na noite que fica"

                                                       Fernando Pessoa


   Estou com frio , mexo-me o mínimo possível pois a sensação é que se eu simplesmente dobrar um dedo , o frio aumentará , é sono , uma semi vigília , não sei , o vento gira pela noite e canta , joga os borrifos de mar sobre o convés , a água salgada invade meu saco de dormir ocupando meu rosto descendo pelo macacão , aumenta o frio...as vezes a gente busca situações como esta , não foi propriamente um sonho quando me vi largado na cama ao teu lado , embaixo do edredorm , a musica da tua voz, esta concepção de alegria que encontro ao invadir com meu nariz os limites de tua blusa...onde você está?Você se preocupa comigo?Você sabe quanto frio eu sinto? o quanto esta distancia , e o mar que se levanta numa muralha e desaba sobre mim nesta noite de vigília castiga?

  Eu saio da crisálida do saco de dormir e sou envolto pelo vento cortante , o sal do mar acumula-se no meu cabelo, torna-o pegajoso , com gosto de mar...agarro-me à amurada e chego ao posto de vigília, tudo joga,tudo balança demais , equilibro-me e me jogo ao outro lado da amurada numa tentativa débil e solitária para tentar controlar a posição do barco que orsando contra o vento já aderna à mais de 50 graus ,tanto que vejo-me de pé na amurada(parede) e segurando nos estais ,ao olhar para baixo no lugar onde deveria estar o piso , está o mar ; com força tirada sabe-se lá da onde riso um pouco da vela mestra, o que me faz perder velocidade porém reestabiliza o navio...encolho-me no convés e fico a observar o mar infinito...quando de repente vejo que algo brilha na água , e as ondas que a proa faz no encontro das águas emitem raios fosforescentes na imensidão da noite azul , são verdes como as canetas grifa texto que você usava nos teus livros...,são as Nocti Luccas, como pode ?Como é possível?Como pode a natureza , seja ela Deus , seja ela o Caos , seja ela qualquer coisa, criar um espetáculo tão bonito?O que são esses raios de Luz que tingem o mar?São essas algas , que comprimidas pelo casco lançam essa luz na escuridão?São as nocti luccas , são as mesmas que meu avô no mar , na praia,numa praia hà tantos anos, fazia saltar sobre meus olhos vidrados de criança desenhando com um graveto fluorescências e sonhos na água do mar?Será esta a concepção , o segredo do mar que une tudo?Que nos dá o peixe , o oxigênio , os sonhos dos sonhadores , a energia do grito de terra à vista?O passado , o presente , as nocti lucas as boas lembranças e esta vontade de contar pra você esta história e você mesmo sabendo que você não quer mais me ouvir?Você que tem medo de amar esse pobre lobo do mar?Eu olho para as ondas , eu olho para as nocti lucas nesta noite , e de uma forma absurda que não busco compreender olhando pro mar , para essas algas que tem por finalidade abstrata emitirem luz , sinto o passado o presente e o futuro aqui olhando pro mar...vivendo no mar , neste tão profundo mar...

   Ouço de repente, sendo tirado deste estado de contemplação , a jenoa(vela de proa), batendo contra o casco , vou engatinhando para a proa , com a lanterna na boca , agarrando-me na amurada em um mundo que, açoitado pelo vento, volta a adernar , vou agarrando-me em cordames , nos estais e chego à proa, com dificuldade luto para recolher a vela para dentro e corro para girar a manive-la que irá caça-la ...com dificuldade seguro nos cabos e fico de pé no bico de proa, sozinho , de frente para o mar..enquanto o navio cavalga as ondas , como se fossemos numa montanha russa , surfando nas ondas , sou tomado por uma sensação maravilhosa , a mesma de quem doma um corcel arisco , a mesma de quem fica de pé na proa do navio sozinho numa noite de tempestade , e de repente , o frio o sal , as ondas que me chicoteiam o rosto , tornam-me mar...algo me une à outros navegantes , algo me une com o infinito e aqui , sozinho sob este céu de estrelas e satélites , perdido e insignificante no meio do oceanos experimento uma sensação de completude , parecida com aquela das pessoas que rezam , a completude daqueles que aprenderam à olhar para o mar, viver o mar.

   Retorno à popa e calculo novamente nosso curso , marco o caminho orientado pela estrela guia, estará você também olhando para ela?Você lembra naquela noite , em que juntos olhávamos as estrelas que eu te disse que nas noites estreladas , se você olhasse aquele ponto brilhante ao lado de Vega , mesmo distantes nos estaríamos de alguma forma unidos , olhando para o mesmo ponto , como se olhássemos abraçados , um mesmo ponto no nosso quarto?Perco-me em lembranças , como entender seus sonhos?Como realizar os teus desejos , como ser parte deles...observei horas enquanto você dormia , feliz simplesmente pela tua proximidade , como um pescador que olha para o mar , como um astrônomo obcecado por estrelas eu te olhava tanto , tanto....isso que nos temos , que talvez se chame amor , digo talvez porque talvez eu tenha aprendido com você que amor é um instante de felicidade que eu pego emprestado quando beijo e descanso no vale dos teus seios , é um espaço infinito entre cada olhar perdido , é o encontrar das lagrimas de tristezas passadas como o encontro dos rios em Manaus , nós somos como aqueles dois rios, caminhamos muitos anos separados até nos fundirmos numa historia ,só , mas nos vamos nos perder no mar?Nós dissolveremos o doce das nossas águas na imensidão salgada do mar?

   Saio triste desta elucubração e olho novamente para a imensidão estrelada...Ora direis ouvir estrelas?Mas , de repente, percebo que Vega desapareceu, e tudo torna-se estranhamente calmo...o barco de repente perde velocidade e endireita...o vento para de soprar...o veleiro reduz a velocidade até quase parar...as velas começam a bater à toa e o barco joga preguiçosamente de um lado para outro fazendo um plac monótono vindo do casco...apenas alguns dias antes ,na festa de inicio da regata , o Ulisses me explicava que se no mar , o vento parar e as estrelas sumirem , vc pode esperar confusão...

   Ouço pelo rádio embarcações com problemas , avisando a Mrinha sobre perda de lemes , alagamentos , estamo numa zona de Pirajás , Pirajás são formações de nuvens CB que se formam sobre o mar pressionando a atmosfera e fazendo com que o vento turbilhone por baixo delas...antes deles há apenas silencio....de repente vejo pela proa uma parede branca se levantar contra o barco , simplesmente me seguro para agüentar o impacto , não há o que fazer, com um barulho ensurdecedor a onda arrebenta na proa explodindo numa nuvem branca que cai chovendo sobre o convés , ilumino as velas para ver se está tudo OK, entro pela vigia e com extrema dificuldade equilibrando-me num ambiente adernado à 60 graus cujo chão ora escapa dos meus pés , ora me atira contra o teto , grito pára o Comandante , Pirajá á proa!

   O Vento não para de inflar sua fúria e à este momento já chega à 40 nós , o casco agüenta a martelada de ondas gigantes como se fossemos um planador desgovernado entre mares de montanhas , é como se o chão à sua volta se tornasse imensos morros de uma tela impressionista , mas no caso , a tela te captura , cai sobre você , neste ponto a tripulação começa à tomar o convés com roupas de tempo , a pressão sobre as velas é tão grande que são necessários dois homens para puxar o cabo que segura a mestra , tudo orquestrado pelo barulho espetacular da explosão das ondas na proa , chove água do mar e chuva da tempestade , é isso , uma tempestade ,não se trata do homem contra a natureza pois isto é impossível , mas se trata de uma tripulação negociando com ela , aproando o navio contra a tempestade , simplesmente porque é assim que se faz , porque é assim que deve ser viver!São mágicos os instantes em que o vento e as vagas retiram a proa da água e vc simplesmente se segura para agüentar o impacto do retorno...eu puxo o cabo da vela com toda a força que tenho e que não tenho , a tripulação e o navio , e o mar com o qual ele interage são um corpo só ,uma tempestade em alto mar é uma catarse , um nascimento , uma vontade, é a vida!

     De repente , assim como veio , a tempestade passa...o navio endireita novamente , aumentamos a área das velas...todos voltam ensopados de sal ao interior do barco e eu fico sozinho outra vez , cansado , ensopado..mas vivo...agarrado à amurada....o céu torna-se novamente estrelado e os ruídos diminuem...De repente com os ouvidos no casco ouço um som , parece um choro , um uivo solitário, um canto sozinho na imensidão azul...não é possível...será o canto de uma baleia?Ouço o esguicho muito perto da amurada , jogo o feixe de luz e vejo um grande vulto negro perto do navio , muitas vezes maior do que o navio , tão perto!Tão viva , tão linda e esguicha novamente!Uma jubarte...que se saltasse acabaria com esta casquinha de alumínio de 42 pés...não me conformo , simplesmente olho e aprecio a companhia?Estará ela sozinha , sente ela saudade de alguma coisa?Vive no caminho sem esperar a chegada?lembro da poesia” Uma baleia no meio do mar...lembra como eu gostava de baleias?Oi minha amiga!

  “Quem me dera visse agora
     As estrelas que estou vendo
        Como no dia que foi embora
          Escutasse o que estou dizendo

Que separados nos perderemos
  Como as ondas no oceano
   E nesta angustia em que vivemos
   Cada dia como um ano

Como ponto eqüidistantes
  A vagar por esta vida
   Pobres , sós , tristes , errantes
    Sem uma meta definida

Ah!Quem me dera que sentisses
   A solidão que eu sinto agora
   Mas se vo^ce não existisse
  Me perderia mundo afora

Como náufragos errantes
  A vagar pelo oceano
   A nos buscar pra nos dizer
     E escutar te escutar , um eu te amo.”

                                                              Callia