Quando tudo voltar ao normal

De Sexta Poética
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por Solstag


Quando tudo voltar ao normal, vamos sair nas ruas e trabalhar, e nos divertir, e nos abraçar. Vamos ver os amigos e a família, festejar, ir à praia, e chamar as ruas de nossas. Vamos bater palmas para os médicos, para os enfermeiros e, quem sabe, se a dimensão do que aconteceu couber nos nossos corações, para todas as pessoas que lutam por e fazem funcionar o sistema único de saúde.

Logo que tudo voltar ao normal, vamos deixar uma em cada duas pessoas no Brasil sem acesso a esgoto ou água tratada. E não nos incomodará que nossas escolas públicas tenham professores mal pagos e sobrecarregados, e acharemos aceitável que alguns nos convoquem a acusar e ameaçar esses profissionais. Seguiremos, decididamente, fingindo não conhecer o papel determinante do ensino público nas sociedades que atingiram um melhor nível de vida.

Quando tudo voltar ao normal, voltaremos a acreditar em super-heróis e super-vilões na vida pública. Insistiremos que a corrupção é uma falha fundamentalmente moral, e não sistêmica ou cultural, e buscaremos soluções na individualização da culpa. Assim, continuaremos desmontando os mecanismos de transparência, de controle social e democracia participativa, e minando a independência da polícia e do jornalismo investigativos – pois nossos super-heróis estão acima do mal.

Logo que possível, reafirmaremos nossa convicção de que nenhum ser humano deve ser poupado de um medo real e presente de ter fome e de não ter teto, salvo se teve a sorte de nascer rico. Nos deixaremos seduzir por histórias de superação, não importa que sejam excepcionais e exclusivas. E guardaremos os olhos fechados para aquilo que em escala caracteriza a capacidade de crescer na vida : não precisar sacrificar suas energias em busca de suprir as necessidades mais básicas. Portanto, quando tudo voltar ao normal, denunciaremos qualquer proposta de renda básica como uma injusta recompensa à vagabundice, e o faremos com maior vigor quanto mais tivemos tudo garantido em nossas vidas.

Vamos sonhar com uma utopia de livre mercado e de consumo, e considerar justo banqueiros fazerem fortuna às custas dos que se arruínam em dívidas ou se consomem em um sem fim de fetiches. Atribuiremos uma aura santa à iniciativa privada, não importa quantos empresários se descubra roubando, corrompendo e praticando os piores crimes, de assassinatos ao trabalho escravo, quando tudo voltar ao normal. Garantiremos que as multinacionais continuem a nos oferecer serviços inferiores, por preços maiores, sem regulação nem concorrência, remetendo seu lucro para o exterior para compensar as vantagens que oferecem na outra ponta do elo colonialista.

Sustentaremos, como condição de existência, mesmo se contra a experiência acumulada, a proibição como solução para o uso abusivo de substâncias cujo consumo moderado é, há milênios, parte integral de culturas em todo o mundo – acompanhada de repressão, violência e encarceramento dos mais vulneráveis. Despejaremos recursos e sacrificaremos vidas pobres, pouco importa se não se reduzirá o consumo ou que regiões inteiras serão deixadas sob controle de narcotraficantes. Quando tudo voltar ao normal, continuaremos levantando muros entre nós, para criar nossos próprios medos.

Por todas as redes, berraremos odes à liberdade, enquanto permitimos que monitorem os mínimos aspectos das nossas vidas e personalidades, controlando o que vemos e lembramos, e calculando como induzir-nos ao engano para vender ao maior pagador. Permaneceremos alheios à transformação das tecnologias em extensões dificilmente dissociáveis da nossa própria mente, e taxaremos de paranoicos os que defendem o direito de entendê-las e modificá-las como requisito para nossa liberdade. Quando tudo voltar ao normal, estaremos despreparados para o presente.

E alimentaremos até as últimas consequências a fantasia de que vivemos à parte dos ecossistemas onde surgimos. Defenderemos, explicita como implicitamente, a supremacia de nossas existências sobre as existências de todos os outros seres, a despeito do que sentimos por eles e da nossa profunda ignorância a respeito delas. Abominaremos o fato de que nossa vida, bem estar, e mesmo nossa felicidade possa depender desses ecossistemas e seres não humanos. E a cada oportunidade lhes daremos as costas e apagaremos nossas consciências, para garantirmos a satisfação de mais um fetiche de consumo, conveniência ou fictícia segurança. Enfim, denunciaremos direitos animais e ambientais como uma monstruosidade porque nossa vaidade tem necessidade de se espelhar.

Quando tudo voltar ao normal... eu gostaria que você também deseje que não volte.


São Paulo, 13 de abril e 06 de maio de 2020.